'Não se pode falar ainda em cacau 100% sustentável', dizem CEOs da Dengo

A Dengo não tem ainda o cacau mais sustentável do mundo. Não por falta de disposição — a chocolateria já nasceu buscando este objetivo lá em 2017. Mas a jornada é longa, explicam Estevan Sartoreli e Tulio Landin, co-CEOs da empresa. A poucos dias da Páscoa, os executivos receberam o UOL na loja conceito da marca na Avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo, e detalharam como o modelo de negócio focado em valores de sustentabilidade e em renda digna têm permitido sua expansão.

Quem é a Dengo

A Dengo é uma marca de chocolates premium criada em 2017 por Guilherme Leal, cofundador da Natura. A empresa não abre quanto produz, lucro ou número de vendas.

São 38 lojas no Brasil e mais duas em Paris, na França — que foi o "laboratório de testes" para a expansão internacional. Outras duas devem ser inauguradas ainda este ano na França, e enquanto isso, outros países da Europa estão sendo mapeados, além do mercado norte-americano.

Para 2025, a companhia pretende inaugurar uma nova planta fabril, que deve aumentar a capacidade de produção em 5 vezes. O local ainda não foi revelado. A atual planta produtiva, que fica em Santo Amaro, zona Sul de São Paulo, está chegando "no limite", já que a ideia é abrir entre 20 e 40 lojas no ano.

Ela ainda não atingiu um ponto de equilíbrio entre custos e receita, o chamado breakeven. Ou seja, ainda perde dinheiro. Isso pode mudar neste ano ou no próximo. Para chegar nesse ponto, Tulio Landin diz que quanto mais a empresa crescer e der lucro, mais é possível distribuir. "Esse ano, a gente subiu o número de produtores em 25%, e aumentou o percentual de produtores com renda digna. Isso só acontece porque tem um negócio que está robusto, que cresce, que gera caixa".

A empresa já nasceu com uma agenda ESG (Environmental, Social and Governance) muito forte. A sustentabilidade de toda a cadeia, incluindo fazer um produto de qualidade, com menos açúcar e pagando uma renda digna ao produtor de cacau, é essencial para os CEOs da marca.

A Dengo possui mais de 100 produtos em seu portfólio de chocolates. Para a Páscoa, foram 31 lançamentos. A amplitude de preços é grande — uma caixinha com 70g de bombons pode ser comprada por 36,90, enquanto o ovo de Páscoa premium, feito com cacau amazônico, custa em torno de R$ 385.

Ovos de Páscoa da Dengo
Ovos de Páscoa da Dengo Imagem: Divulgação

Por que o chocolate da Dengo é tão mais caro?

A ideia da Dengo é de não buscar preço a qualquer custo. A empresa busca oferecer um pagamento digno aos produtores, além de ter responsabilidade ambiental, dizem os executivos.

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Nem sempre o consumidor enxerga o valor "agregado" ao preço. Por isso, precificação é um grande desafio para a Dengo. Outro é a comunicação do valor ao cliente. Os executivos reiteram que a responsabilidade não é do cliente. Cabe ao setor chamar a responsabilidade para si e educá-lo.

Dá para fazer mais barato? Dá. Sabe o que eu faço? Põe tudo isso aqui em autoatendimento, e deixo uma pessoa só na loja. Vai ser a marca que eu quero construir? Não vai. Então, são as escolhas de negócios que você faz.
Tulio Landin, co-CEO da Dengo

Além disso, os chocolates usam menos açúcar que os mais tradicionais, algo pouco usual por aqui. O dark chocolate representa cerca de 11% da participação do mercado brasileiro. Nos Estados Unidos, essa fatia é de 35% e na Europa, de 65%. "O produto barato vende. A minha fala é meio polêmica, eu sei, mas o açúcar tem um poder de viciar, então é barato, vende e vicia. Só que uma marca que tem compromissos conscientes e de um consumo responsável, como nós, não pode se permitir a fazer crescimento e ganho de market share a qualquer custo", afirma Estevan Sartoreli, co-CEO da marca.

Tem marcas que crescem, mas é mais açúcar, é menos renda, menos meio ambiente, menos saúde.
Tulio Landin, co-CEO da Dengo

Dengo paga mais ao produtor para ter mais qualidade

O cacau é uma commodity, negociada em Bolsa. Mas a Dengo não paga o preço de mercado aos seus fornecedores: em 2023 pagou, em média, 105% do valor acima da Bolsa para os seus produtores.

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Para calcular quanto será pago, a companhia estabeleceu uma série de critérios que vale para todos os produtores. Ele pode receber de 70% a 245% acima do preço do mercado, a depender da qualidade do cacau, se ele é orgânico ou não, se há critérios ESG da fazenda e outros. Uma pequena parte do seu lote é enviada ao CIC (Centro de Inovação do Cacau), que tem a companhia como um de seus clientes, onde diversos parâmetros são analisados, como pH, nível de fermentação, umidade, se há algum "defeito".

A gente paga mais, mas o produtor entrega um cacau que é de altíssima qualidade. A gente acredita que sim, o Brasil tem hoje todos os elementos para produzir um excelente cacau.
Estevan Sartoreli, co-CEO da Dengo

A maior parte do cacau é produzida em Ilhéus e Itabuna, na Bahia, em um raio de quase 400 quilômetros. São hoje, no total, 205 produtores — número que deve aumentar para acompanhar a expansão da marca. Desde 2020, a Dengo também começou a formar uma rede de produtores no Pará, no eixo Amazônia. Bahia e Pará juntos representam, juntos, 96% do cacau produzido no Brasil.

Apesar desse aumento no preço, apenas 48% dos produtores da Dengo deles atingem o living income, que é de R$ 2.800 na região do Sul da Bahia. Em 2022, o número era de 38%. A companhia tem o compromisso de dobrar a renda de pelo menos 3.000 famílias até 2030. Além de aumentar o pagamento, busca oferecer ferramentas para que este produtor possa se desenvolver. "A gente acredita que não vai existir cacau sustentável se não existir renda sustentável e digna para pequenos e médios produtores do Brasil no mundo", diz Estevan Sartoreli, co-CEO da Dengo.

A indústria cacaueira paga, tradicionalmente, muito pouco ao produtor. A maioria vive em regiões de baixo IDH (Índice de Desenvovimento Humano) e não garante o chamado living income, ou seja, o valor mínimo necessário para conseguir viver e sustentar uma família de quatro pessoas, por exemplo. Segundo o MPT, desde 1998, 243 trabalhadores em regime análogo à escravidão foram encontrados na atividade de cultivo do cacau. De todos os problemas envolvidos no processo (commodity com preço baixo, desmatamento, trabalho infantil e trabalho análogo a escravidão), Estevan cita que o fator central ainda é a questão da renda.

Existem algumas marcas internacionais que atuam no Brasil e falam: 'nós temos aqui um cacau 100% sustentável'. Não, nós estamos todos longe de ser 100% sustentáveis ainda. Enquanto não tiver produtores com renda 100% digna, enquanto nós não tivermos 100% de cacau rastreado, 0% de desmatamento, a gente não pode dizer que a gente chegou num cacau 100% sustentável.
Estevan Sartoreli, co-CEO da Dengo

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O cacau é sustentável no Brasil?

Anna Paula Losi, presidente-executiva da AIPC diz que o cacau brasileiro é, sim, sustentável. Ela lembra, inclusive, que na Bahia, por exemplo, a marca registrada é o "cacau-cabruca": um sistema agroflorestal onde o cacau é cultivado sob a sombra da copa das árvores da Mata Atlântica. Isso contribui para a preservação do bioma e aumenta a produtividade.

Existe um esforço grande por parte da cadeia produtiva para promover a cultura ESG, diz Anna Paula. Ela menciona a iniciativa CocoaAction Brasil, que entre as iniciativas, tem como objetivo promover o aumento do acesso ao crédito para o produtor, além de levar assistência técnica e criar condições para que este produtor se organize em cooperativismo. Ela acredita que não são mudanças pontuais da indústria ou do próprio produtor que vão transformar a cadeia como um todo, que tem mais de 90 mil unidades produtivas de cacau

Mas ela reconhece que existem alguns gargalos na cadeia que precisam ser corrigidos. O primeiro deles é a rastreabilidade. Mais de 70% da comercialização do cacau não é feita diretamente para a indústria. Ainda há a questão do acesso às plataformas de monitoramento de desmatamento e as questões que envolvem logística.

A preocupação com sustentabilidade também passa pelo consumidor. Ainda que não possua um recorte específico sobre chocolates, o estudo "Euromonitor Voice of the Consumer: Sustainability Survey", que coletou dados entre janeiro e fevereiro de 2023, mostrou que 22,5% dos consumidores online no Brasil priorizam comprar produtos ecologicamente conscientes ou eco-friendly quando se trata de alimentos.

As chocolaterias estão liderando ao oferecer opções que vão além do simples prazer e cujos ingredientes podem ser rastreados até suas origens. Seja por meio de um Centro de Ciência do Cacau, como desenvolvido pela empresa americana Mars, da compra direta de matérias-primas de produtores sem intermediários, ou por meio de parcerias técnicas e educacionais, como praticado pela Dengo Chocolates, a sustentabilidade na cadeia de suprimento do cacau, o principal ingrediente dos chocolates, é algo que já está no radar do setor e deve se tornar ainda mais prioritário daqui para frente.
Anderson Rosa, pesquisador da Euromonitor International

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Melhorar a qualidade do chocolate passa por capacitar o produtor

Túlio Landin, co-CEO da Dengo Chocolates
Túlio Landin, co-CEO da Dengo Chocolates Imagem: Dengo/Divulgação

O Brasil é o sexto maior produtor de cacau do mundo. E a maior parte é para consumo interno: no ano passado, o mercado nacional recebeu 220 mil toneladas, o que representa 97% de tudo o que é produzido no país (o dado exclui o cacau utilizado para chocolates finos), alta de 7% em relação a 2022, segundo a AIPC (Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau). Ainda assim, o país não é autossuficiente para atender a demanda da indústria.

O mercado de chocolate movimentou R$ 25 bilhões no Brasil em 2023, segundo a Euromonitor, alta de 15%. A Euromonitor International projeta que o mercado de chocolates no Brasil pode crescer até R$ 40 bilhões até o ano de 2028. No mundo, as vendas de chocolate movimentaram US$ 123 bilhões no período. As principais marcas do mercado são hoje, sem ordem de importância: Cacau Show, Lacta, Bis, Garoto e Ferrero Rocher.

E o chocolate está mais caro: a commodity é cotada hoje a um preço muito acima do normal. Os contratos futuros são negociados na Bolsa de Nova York a US$ 7 mil por tonelada. Há seis meses, o valor era de pouco mais de US$ 3,8 mil. As mudanças climáticas afetaram a produção global, sobretudo na África: os maiores produtores do mundo são a Costa do Marfim (2,1 milhões de toneladas) e Gana (680 mil toneladas).

Mas, mesmo com preços muito altos, o produtor acaba recebendo pouco dinheiro pelo seu cacau. Ana Paula, da AIPC, explica que a produtividade do cacau no Brasil é baixa, de cerca de 300 quilos por hectare. O Instituto Arapyaú diz que uma produtividade média razoável seria de 1.000 quilos por hectare.

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Por isso, ela reitera a importância de fornecer assistência técnica para aumentar a produtividade. "A melhoria de renda, melhoria da produtividade, melhor condição de trabalho, tudo passa pelo produtor receber uma boa assistência técnica, porque muitas vezes a condição de trabalho não é adequada, não é porque o produtor não tem condições, mas porque não sabe o que ele tem que dar", afirma Anna Paula.

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