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OPINIÃO

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Guerra na Ucrânia é bomba de efeito retardado no mundo do ESG

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Nilson Brandão

09/03/2022 04h00

A invasão russa à Ucrânia destravou o pino do que pode ser uma bomba de efeito retardado no mundo ESG. Fundos referenciados nos padrões de Enviromental and Social Governance (governança social e ambiental) detém razoável participação em ativos russos e nem todos sabem o que fazer.

Esse é o cenário que vem da cobertura dos principais veículos de negócios e finanças internacionais. Mas não apenas fundos estão reavaliando ou sendo questionados em função de seus portfólios. Multinacionais industriais e do setor de serviços estão procurando se ajustar ao cenário da guerra, enquanto outras simplesmente não sabem para onde ir ou apenas decidiram nada fazer até o momento.

Nos últimos dias, o bilionário fundo de pensão do estado de Nova York (patrimônio de US$ 280 bilhões) proibiu novos investimentos em empresas russas e determinou revisão dos riscos dos atuais investimentos dos ativos no país.

O fundo avalia que a crise atual "destacou grandes riscos políticos e de investimento relacionados à política externa desordenada e tirânica do presidente Putin", prossegue a nota, "levando a sanções que prejudicaram significativamente o já fraco crescimento econômico da Rússia".

Se a guerra da Ucrânia pôs em xeque investimentos no país invasor, de maneira geral, para os fundos que carregam a governança social e econômica como bandeira, a sensibilidade é ainda maior. Não teriam considerado o risco geopolítico com antecedência?

A pergunta ecoa e ressoa dentre os críticos do ESG como uma espécie de sucedâneo do que décadas atrás foi a corrida corporativa em torno do tema da sustentabilidade. O mundo ESG enfrenta um desafio nestes tempos de conflagração.

O fundo soberano norueguês (ativos de US$ 1,3 trilhão) determinou corte da exposição a ativos russos. O movimento não se limita aos fundos. No front corporativo, o grupo britânico de energia BP deu baixa no investimento que detinha na petrolífera russa Rosneft.

O movimento de desembarque pode não estar perto do fim de uma primeira etapa. Na década passada, companhias e instituições fizeram parceria justamente com o fundo soberano da Rússia. Como prosseguirão?

Pressionadas, empresas americanas de fast-food e de bebidas, como McDonald's e Coca-Cola, não resistiram e anunciaram suspensão de atividades na Rússia.

Difícil julgar —e é até açodado— estas companhias, tanto quanto pregar na parede a lista de fundos ESG expostos ao mercado russo. No caso das multinacionais, seria o caso de deixar a população russa sem os produtos ofertados, quando nem mesmo a invasão é um consenso interno?

No caso do mundo ESG, como contrabalançar as apostas feitas em um país diante dos próprios compromissos de governança pré-existentes? A governança econômica social ganhou volume nos negócios nos últimos anos e, com o crescimento da importância relativa, amealhou também desconfiança: quem realmente prega e pratica seus princípios e que, no popular, joga para a plateia?

O ESG não é uma panaceia. Não chega a ser difícil identificar exemplos recentes da preocupação social e ambiental sendo posta à prova. Fundos europeus atuam até mesmo para vincular o pagamento de bônus executivos a metas ambientais e sociais.

A questão é: quem garante que os CEOs de hoje estarão em suas companhias daqui a 20 ou 30 anos, quando expiram o prazo para suas metas de emissão zero?

De outra forma, que incentivo teriam em usar no curto prazo dinheiro, que faria falta no "bottom line", para cumprir exigências de longo prazo?

Os fundos Allianz Global Investors (? 673 bi em ativos sob gestão) e a Cevian Capital (U$ 16,5 bi) são alguns dos que trabalham para que metas de ESG sejam relacionadas às políticas de bonificação.

Acontece que é comum a desconfiança sobre novas tendências —ainda mais se são cantadas em versa em prosa. Se podem ser resumidas em expressão de impacto ou em siglas, pior. E esse é justamente o caso do ESG. O padrão de boas práticas virou credo nas empresas e consultorias.

Surgiu, no entanto, em grande parte, por conta da pressão de acionistas e investidores para se protegerem quanto a potenciais riscos climáticos futuros em seus portfólios.

No cenário do mais recente relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), 1 bilhão de pessoas em cidades de baixa altitude serão impactadas com aumento do nível do mar e maior frequência de fenômenos como ciclones, até 2050. Algo entre US$ 7 trilhões e US$ 14 trilhões em ativos de infraestrutura costeira estarão sob risco até 2100.

De volta aos impactos da crise geopolítica, impactos na economia real não param de surgir. A multinacional de móveis Ikea interrompeu operações na Rússia e em Belarus.

"A guerra devastadora na Ucrânia é uma tragédia humana, e nossa mais profunda empatia e preocupação estão com os milhões de pessoas afetadas. As ações imediatas do Inter IKEA Group e do Ingka Group foram apoiar a segurança pessoal dos colaboradores da Ikea e suas famílias, e continuaremos a fazê-lo", afirma em nota.

Curioso é que justamente a Rússia foi destacada no relatório de sustentabilidade da empresa, de janeiro passado, como um dos dez mercados que alcançaram uso de energia 100% renovável. Intrigante as voltas que o mundo dá.

Até mesmo supermercados americanos e europeus entraram na guerra. Redes britânicas como a Sainsbury's, Aldi, Asda e Morrisons suspenderam a venda de produtos russos em resposta à invasão russa. Vodcas russas estão dando espaço a ucranianas.

Há casos até de revisão de produtos que tenham componentes russos. Em um mundo interconectado, mesmo o que ocorre a milhares de quilômetros gera impacto local.

As pesquisas de marketing costumam mostrar que a fidelidade às marcas é definida pelo alinhamento dos valores do consumidor ao dos fabricantes e fornecedores. Resta saber o quão prolongado será o conflito e as medidas adotadas contra o país agressor.