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Regra exige que BC estimule emprego, e isso pode atrapalhar sua autonomia

11/11/2020 04h00

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No última terça-feira, dia 3 de novembro, foi aprovado no Plenário do Senado, o substitutivo do senador Telmário Mota (Pros-RR) ao Projeto de Lei Complementar (PLP) 19/2019, cujo objetivo principal é garantir autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira ao Banco Central do Brasil (Bacen). Neste mesmo projeto também foi estabelecido que o Banco Central do Brasil terá por objetivo fundamental assegurar a estabilidade de preços e, de maneira complementar, zelar pela estabilidade e eficiência do sistema financeiro, além de suavizar as flutuações do nível de atividade econômica.

Sob o ponto de vista técnico, há pouca dúvida sobre a necessidade de se dar autonomia ao órgão e de se definir como meta principal o controle da inflação, principalmente para um país que conviveu durante anos com "ópio da hiperinflação". Também não são estranhas as duas funções complementares acima apontadas. Aliás, o que o Senado aprovou nada mais é do que o padrão vigente em economias desenvolvidas.

A ideia central da autonomia dada ao Banco Central é garantir que a política monetária seja conduzida de maneira independe de pressões políticas e que se torne até mesmo uma espécie de desincentivo à adoção de políticas populistas, cujo pano de fundo seja o descontrole das contas públicas com finalidade eleitoreira. Isto porque eventuais excessos de gastos do executivo (política fiscal expansionista) que possam aquecer momentaneamente a economia, mas gerar inflação no futuro, terão como reação do Bacen a adoção de uma política monetária contracionista (com a elevação da taxa de juros, por exemplo), que certamente minimizarão os efeitos eleitoreiros desejados pelo "governante gastão de plantão".

Em um contexto como este, e com metas de inflação bem definidas, as expectativas futuras sobre a economia acabam se tornando mais estáveis, minimizando os riscos percebidos pelos investidores, o que certamente atrairá capital estrangeiro e elevará o nível de investimentos na economia ao longo do tempo. Em última instância, este círculo virtuoso também acabará se refletindo no aumento do nível de emprego na economia de maneira sustentável.

Para além da própria gestão da política monetária, a autonomia do Bacen também se refletirá sobre outras funções que são delegadas ao órgão. Por exemplo, está em curso hoje um amplo processo de revisão regulatória no sistema financeiro que tem por objetivo elevar a concorrência no setor ao longo do tempo, com impacto positivo para os consumidores. Várias medidas têm sido tomadas (como a introdução do Open Banking, a partir do próximo dia 30 de novembro), que certamente afetam os interesses de grandes instituições financeiras, com um poder de pressão considerável no ambiente político. Neste sentido, os mandatos de quatro anos concedidos aos diretores do Bacen lhes permitirão tomar decisões que atendam a critérios técnicos, sem o receio de serem tirados dos respectivos cargos.

O único ponto no PL 19/2019 que pode causar alguma preocupação é um trecho contido no final do parágrafo único do Artigo 1º, que atribui também ao Bacen o objetivo de fomentar o pleno emprego. Este trecho, tomado em conjunto com o inciso IV do artigo 5º, que define que os Diretores do órgão poderão ser exonerados quando "apresentarem comprovado e recorrente desempenho insuficiente para o alcance dos objetivos do Banco Central", pode permitir uma intepretação errada sobre a atuação eficiente dos seus dirigentes e, consequentemente, provocar a eventual demissão da diretoria em questão.

Para entender isso, basta lembrar que a política monetária é apenas uma peça no quebra-cabeça da política econômica. Vamos supor que determinado governo resolva reiteradamente empreender uma política fiscal expansionista, pressionando os índices de inflação. Neste contexto, não restará outra alternativa ao Bacen a não ser elevar as taxas de juros para conter a inflação. Entretanto, o efeito colateral desta elevação dos juros poderá ser a redução do nível de emprego. Sendo isso verdade, poderia ser alegado que os dirigentes do órgão não estariam cumprindo seu papel de buscar o pleno emprego e que, portanto, deveriam ser exonerados.

Em última instância, ao incluir o pleno emprego como também objetivo do Banco Central, criaremos uma situação de atribuir ao órgão dois objetivos que podem ser contraditórios em determinados momentos. Com isso abrimos espaço para que os dirigentes sejam criticados e responsabilizados por adotar corretamente uma política monetária restritiva para controlar a inflação (mas que não leve ao pleno emprego), sendo que o verdadeiro problema está na adoção de uma política fiscal excessivamente expansionista por parte do Executivo.

Sob o ponto de vista técnico, atribuir um duplo objetivo ao Bacen, com apenas um instrumento de política econômica (monetária), poderá criar uma situação ambígua para os dirigentes do órgão e eventualmente gerar um incentivo (político) ruim, fazendo com que deixem a função precípua de "guardião da moeda" em segundo plano.

É possível que o problema aqui descrito seja minorado, na medida em que a exoneração por insuficiência dos diretores só se dará por solicitação do Conselho Monetário Nacional (CMN) ao Presidente da República, e desde que aprovada por maioria absoluta do Senado. No mesmo sentido, a inclusão do texto "sem prejuízo de seu objetivo fundamental" (qual seja, a estabilidade de preços) no início do parágrafo único, dá margem a interpretação de que a busca do pleno emprego estaria condicionada à manutenção da estabilidade de preços.

Aliás, para aqueles que justificam a inclusão do pleno emprego na nossa lei com base no caso americano, uma boa leitura da página do Federal Reserve (Banco Central Americano) mostra que a interpretação do "emprego máximo" é dada "com base no nível mais alto de emprego ou o nível mais baixo de desemprego que a economia pode sustentar, mantendo uma taxa de inflação estável" (tradução livre extraída do link: What economic goals does the Federal Reserve seek to achieve through its monetary policy?).

De toda forma, se o texto for aprovado como está na Câmara dos Deputados, só o futuro dirá qual será o caminho trilhado. Contudo, tratando-se de Brasil tudo é possível, principalmente em anos eleitorais, cuja pressão por mais gasto público é sempre maior.