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Ex-ministro do PT parece esquecer qual foi seu papel na crise econômica

31/12/2020 04h00

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Neste final de semana, deparei-me com o texto do ex-ministro da fazenda, Guido Mantega, tratando do resultado econômico desta última década (veja: Mais uma década perdida). Causou-me estranheza ver alguém que tenha sido o responsável pelas principais decisões econômicas do país entre 2006 e 2014 se eximir da responsabilidade do que ocorreu e acusar seus sucessores de toda a calamidade que vivenciamos até os dias de hoje.

A leitura do texto citado aqui induz a acreditar que houve uma mudança brusca e deliberada na política econômica a partir de 2015, que passou a ser neoliberal (seja lá o que isso queira dizer); e que esta mudança, em conjunto com o combate mais forte à corrupção, foram os motores da crise que vivemos. Infelizmente o autor parece ter esquecido de uma lição básica em economia e de fatos que antecederam a tal da mudança brusca apontada.

Qualquer aluno de segundo ano de economia sabe que importa mais a dinâmica econômica do que a observação de dados específicos, escolhidos em um determinado momento do tempo. Por exemplo, afirmar que o estoque da dívida líquida estava baixa em 2014 diz muito pouco sobre sua dinâmica (sobre os fatores que levaram a sua evolução). Por óbvio, o crescimento de qualquer dívida está relacionado aos déficits acumulados ao longo dos anos. Neste sentido, já em 2014 o governo apresentou um resultado primário negativo em suas contas, depois de anos de superávit, e a dívida já começava seu processo de ascensão. A questão é entender então como passamos de superávits primários para déficits crescentes.

Neste aspecto parece que o autor do referido texto se esqueceu dos constantes aumentos de salários acima da inflação dados ao funcionalismo público, principalmente durante sua gestão no Ministério da Fazenda (ver: Três décadas de funcionalismo brasileiro (1986-2017)). E este tipo de gasto, uma vez criado, além de gerar impactos de segunda ordem (por exemplo, sobre a dinâmica futura da previdência), não são passíveis de cortes. Também esquece o então ministro da fazenda das constantes desonerações tributárias para "setores escolhidos" (ver: Reduções de tributos continuarão, diz Guido Mantega), cuja correção de rumo não é trivial de se fazer, conforme debate que temos assistido no Congresso Nacional. Só esses dois exemplos já ilustram claramente que os crescentes déficits primários observados a partir de 2014 nada mais são do que o resultado de uma gestão anterior das contas públicas no mínimo questionável.

Poderia citar ainda o histórico de atuação do BNDES (da qual o ministro também foi presidente), que forneceu crédito subsidiados a setores e empresas que não precisariam, acabando por estimular a formação de conglomerados empresariais com forte poder de mercado (alguns envolvidos em escândalos de corrupção, como o caso da JBS, por exemplo). Neste mesmo capítulo, o ministro poderia ainda lembrar das transferências que o Tesouro Nacional realizou para o BNDES ou ainda as famosas pedaladas fiscais ocorridas principalmente durante a sua gestão e que culminaram com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff por crime contra a lei orçamentária (ver: Agressões ao Direito Financeiro dão razões para o impeachment).

No capítulo Lava Jato não fica claro se o autor do texto propõe que o país simplesmente ignore a corrupção. Mas, se for o caso, seria importante que ele desse uma lida em documentos do Banco Mundial que indicam o efeito brutal da corrupção sobre a economia e, principalmente, sobre os mais pobres (ver: Combating Corruption). De toda forma, a queda de investimentos no setor de petróleo, ao contrário do que imagina o ex-ministro, decorreu da descapitalização da Petrobrás, causada em parte pela corrupção identificada.

Mas essa descapitalização também tem por pano de fundo o controle de preços de combustível, os planos megalomaníacos de investimentos em refinarias sem sentido (ou cujo setor privado poderia entrar) ou a compra de ativos enferrujados (como no caso da "Ruivinha de Pasadena"). Aliás, vale lembrar que o ministro também foi presidente do conselho de administração da Petrobras entre 2010 e 2015, exatamente no período que a empresa mais sofreu com interferências políticas externas. Não por outra razão, conseguiram a "proeza" de fazer um monopólio estatal desse porte voltar a ter prejuízo contábil em dois anos seguidos (ver: Prejuízo da Petrobras em 2014 foi o maior do Brasil em quase 30 anos; veja ranking). Interessante também lembrar o papel ativo que o então ministro exerceu na descapitalização do setor elétrico via imposição de redução das tarifas por meio da MP 579 em 2012. E essa conta, em menor ou maior grau, estamos pagando até hoje.

Finalmente, em seu texto, o ex-ministro desconsidera que a péssima distribuição de renda no país não é algo recente. Em que pese ter havido alguma melhora na primeira década deste século, os ganhos obtidos foram dizimados pelo resultado da gestão econômica temerária durante principalmente os dois governos Dilma Rousseff. Sob o ponto de vista de bem-estar, o que importa inicialmente é se o cidadão está empregado e se a sua renda real (descontada a inflação) tem sido suficiente para fazer frentes às suas necessidades. Em outras palavras, quanto maior o nível de emprego, menor a inflação e maior a massa salarial, melhor será para todos na economia e maior a chance de se distribuir renda.

E neste aspecto, o que notamos é que o mercado de trabalho já vinha desacelerando desde o final de 2012 (em consonância com a desaceleração econômica), sendo que a partir de 2013 tivemos sinais de que o desemprego começaria a subir no país (e isto se verificou mais claramente a partir de 2015). O PIB, em 2014, teve um crescimento nominal de apenas 0,5%. E a inflação acumulada no período de 2010-2014 foi de aproximadamente 35%, chegando em 2015 em 10,67%. Não por outra razão o rendimento médio real do trabalhador, que se estagnou no ano de 2014, passou a desabar em 2015. Em outras palavras, os erros passados já começavam a cobrar sua conta. De toda forma, o que chama a atenção no texto do ex-ministro é que durante toda sua gestão deixou-se de lado uma das principais fontes de distribuição de renda, qual seja, a reforma tributária.

De uma maneira resumida, o que ocorreu a partir de 2015 não é nada mais do que o reflexo de atitudes equivocadas passadas na área econômica. É muito fácil culpar o bombeiro por não ter conseguido evitar os efeitos do incêndio quando se é aquela pessoa que acendeu a fogueira e jogou gasolina durante períodos seguidos. O que as equipes econômicas que o sucederam fizeram a partir de 2015 não foi nada mais que adotar medidas responsáveis de controle fiscal e de combate à inflação, que nada tem a ver com discussão ideológica.

Fato é que até hoje não corrigimos os erros passados. Teremos ainda um longo caminho pela frente e que decidir se esta conta ficará para os mais pobres (com o corte de programas assistenciais, redução de investimentos em saúde, educação e segurança) ou para os mais ricos (realizando as reformas administrativa, tributária e acabando com privilégios fiscais de determinados grupos).