Custo Brasil, subsídios e atraso da empresa explicam saída da Ford do país
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Nesta segunda-feira a Ford anunciou que encerrará sua produção de veículos no Brasil, mantendo no país apenas a sede administrativa da América do Sul, o Centro de Desenvolvimento de Produto e o Campo de Provas (ver: Ford avança na reestruturação da América do Sul, encerra as operações de manufatura no Brasil e atende clientes com nova linha de produtos). O que mais me surpreendeu neste anúncio foi a surpresa geral pelo fato em si, uma vez que a montadora já tinha anunciado há tempos que, como estratégia global, trabalharia com um portfólio de veículos quase que totalmente distinto dos produzidos por aqui, concentrando-se em picapes e utilitários esportivos. Aliás, no início de dezembro, esta decisão já tinha implicitamente sido anunciada, quando a Ford resolveu alocar seus investimentos nas fábricas da Argentina e Uruguai, destinadas à produção do novo portfólio (ver: Ford escolhe Argentina para voltar a investir na América Latina).
Depois do anúncio, passamos a assistir todo tipo de movimento de "caça aos culpados", com as mais distintas justificativas. Rodrigo Maia alertou para a necessidade de se fazer uma reforma tributária com urgência. A oposição não tardou em atribuir ao atual governo a responsabilidade. Já o governo, nas figuras do presidente e vice, preferiu lembrar dos subsídios obtidos pela empresa (e pelo setor) ao longo do tempo e o histórico de pressão para mantê-los. Houve também quem lembrasse do comportamento dos sindicatos, que impediria a obtenção de ganhos de produtividade. De uma maneira geral, quando tratamos do setor, todos têm um pouco de razão.
Sim, é verdade que o setor, ao logo do tempo, tem se beneficiado de vários programas de isenções fiscais (Inovar-Auto, PSI, Lei do Bem, Rota 2030, etc.). Aliás, o Inovar- Auto até nos rendeu uma derrota em um painel da Organização Mundial do Comércio (OMC), por ser considerado um programa protecionista e inconsistentes com as regras do comércio internacional do órgão. Também é verdade que cansamos de ver elevações de alíquotas de importação e estabelecimento de cotas para trazer veículos de fora, principalmente durante o governo Dilma Rousseff. Isso sem falar das guerras fiscais entre estado da federação, que acabaram por redefinir a localização de processos produtivos. Aliás, o próprio caso da Ford em Camaçari é um bom exemplo (ver: Inaugurada há 20 anos, fábrica da Ford de Camaçari foi alvo de disputa entre estados). Por óbvio, essas decisões governamentais mudaram incentivos no setor e provocaram uma realocação de recursos e investimentos, muitos deles não sustentáveis e ineficientes ao longo do tempo (sem falar da transferência de renda de outros setores e de consumidores para a indústria automobilística).
Por outro lado, não é menos verdade que uma boa parte das constantes reclamações do setor também procede. Temos um dos piores ambientes de negócios do mundo. Excesso de burocracia em todos os níveis, insegurança jurídica, uma carga tributária elevada, que gera ainda um custo de transação não desprezível e uma péssima logística de transporte (portos, ferrovias, etc.). Também há dificuldades nas relações sindicais (principalmente com os sindicatos mais antigos) para fazer os ajustes necessários nos processos produtivos (sem falar de relações ancilares, como aquelas associadas à negociação com o "cartel dos cegonheiros"). Em última instância, o Custo Brasil, por óbvio, também afeta e muito o setor automobilístico.
Sob o ponto de vista prático, a combinação ao longo do tempo de subsídios tanto pelo lado da oferta como da demanda ajudou a elevar "artificialmente" as vendas no setor até 2012. A partir daí, já com a economia brasileira dando claros sinais de enfraquecimento e com a falta de solução dos problemas estruturais, o setor continuou a acreditar que a trajetória de vendas não se alteraria. Entretanto o que se verificou foi o contrário. De dezembro de 2012 para dezembro de 2019, houve uma queda de 27% no número de licenciamento de veículos; e até dezembro de 2020, essa queda foi de aproximadamente 34%.
Fato é que hoje temos um excesso de capacidade ociosa no setor (em torno de 30%), um número elevado de montadoras produzindo por aqui (26 fabricantes e 65 unidades fabris, segundo Anuário da Anfavea de 2020) e nenhum sinal de que o setor voltará a ter os mesmos números do passado. Claro que a implementação das reformas estruturais e a correção do rumo das contas públicas podem ajudar na recuperação das expectativas econômicas no país. Mas cada vez isso parece menos provável no curto prazo, dado principalmente o ambiente político conturbado vigente.
E mesmo que isso ocorresse, há um movimento de forte mudança estrutural no setor, que torna improvável voltarmos aos números do passado. Pelo lado da demanda, as pessoas cada vez menos buscam ter veículo, preferindo usar o transporte público (quando de qualidade), serviços do tipo Uber ou 99, bicicletas, patinetes, etc. Também tem se fortalecido a ideia de uso compartilhado de veículo ou mesmo de aluguel de carros quando necessário. Não por outra razão, algumas montadoras no país já prestam este serviço. Pelo lado da oferta, o nível de exigência regulatória de governos e daqueles que ainda querem ter a posse de veículos têm se deslocado para carros mais eficientes, menos poluentes e como mais tecnologia, o que implica naturalmente custos mais elevados para as montadoras, inclusive de Pesquisa e Desenvolvimentos (P&D).
Este novo cenário tem indicado uma mudança no mercado global de automóveis, com as empresas buscando minimizar seus custos de produção ao extremo, investindo cada vez mais em fábricas robotizadas, desenvolvendo cadeias de suprimentos mais globais e eficientes, relocalizando fábricas de maneira mais estratégicas e investimento em desenvolvimento de carros mais modernos (híbridos, por exemplo), que permitam agregar mais valor e margem de lucro. E talvez esteja aí uma boa parte da explicação da saída da Ford como fabricante no país.
Pelas informações disponíveis, há muito tempo a empresa não investia em modernização de suas fábricas no país. Vinha amargando prejuízos constates e perda de participação de mercado. Mais do que isso, os carros até então produzidos aqui eram mais populares (Ka e Fiesta, este último já descontinuado), de baixa margem operacional. Até o Ecosport se mostrava defasado, tendo perdido bastante mercado. Por outro lado, a produção na Argentina da Ranger foi menos uma escolha e mais uma continuidade do que já está lá. Dada a expertise desenvolvida e o fato do produto ter maior valor e margem agregado, a opção natural foi direcionar os investimentos para lá. Ademais, dado o acordo automotivo vigente entre os dois países e o livre comércio a partir de 2029, será fácil a Ford manter suas vendas no Brasil.
Já a decisão pelo Uruguai parece estar em parte baseada na estabilidade econômica e na segurança jurídica vigente do país. Mas também conta a pequena escala de produção do veículo escolhido (Transit), a possibilidade de exportar com tarifa zero para todo o Mercosul, além das negociações realizadas com o governo local e com a empresa Nordex, parceira neste empreendimento (ver: Ford vuelve a Uruguay tras 35 años con inversión de $50 millones).
Há que se lamentar muito pela perda de empregos no país, mas isso faz parte de decisões empresariais de realocação de negócios em um mundo mais global e, cada vez mais, será uma constante em um ambiente de livre comércio. Infelizmente, o que podemos fazer de melhor no curto prazo é requalificar os funcionários demitidos. Já no médio e longo prazo, a saída será corrigir todos os enormes problemas estruturais do Brasil e investir fortemente em capital humano, porque este será um dos principais fatores na decisão de investimentos das empresas no futuro.
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