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Lei de licitações pode encarecer compras do governo e "legalizar" corrupção

Em coautoria com César Mattos, Doutor e mestre em Economia e Consultor da Câmara dos Deputados.

19/01/2021 04h00

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Margem de preferência pode ser entendida como qualquer vantagem criada no processo licitatório que envolva preços. Nesta linha, a atual Lei de Licitações (Lei 8.666/93) estabelece no seu texto a possibilidade de se definir margem de preferência para empresas nacionais em duas situações.

A primeira, para produtos manufaturados e para serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras (inciso I do § 5º do art. 3º). Neste caso, poderá ainda ser estabelecida margem de preferência adicional se os produtos ou serviços forem resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País, desde que não ultrapasse o montante de 25% sobre o preço dos produtos manufaturados e serviços estrangeiros (§ 7º do art. 3º).

A segunda, para bens e serviços produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social (inciso II do § 5º do art. 3º) e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação. Em outras palavras, hoje o governo já pode ser obrigado a pagar até 25% a mais do que poderia para adquirir bens ou serviços de que necessita.

A ideia de se estabelecer Margem de Preferência no Brasil foi introduzida durante o governo Dilma Rousseff, por meio da Medida Provisória n° 495/2010, e tinha por objetivo declarado fomentar o desenvolvimento de empresas nacionais. Desde então já foram estabelecidas margem de preferência para compra de caminhões, refrigeradores, brinquedos, medicamentos, impressoras, etc. Fato é que este instrumento, da forma como está desenhado, além de elevar muitas vezes a burocracia no processo licitatório, acaba transferindo recursos dos "pagadores de impostos" (nós) para determinados grupos empresariais nacionais, uma vez que os preços finais acabam saindo mais caro para o Estado.

Se olharmos para fora do país, principalmente nos casos de países desenvolvidos, a inclusão de Margem de Preferência em licitações tem como princípio primordial elevar a concorrência no mercado de compras públicas. E isso tem por base dois pressupostos. O primeiro, é que em mercados nos quais a assimetria entre as empresas é muito grande, estabelecer margem de preferência para firmas menores pode forçar as maiores a oferecer um lance melhor para o licitante.

O segundo, envolve acreditar que empresas menores, que tenham preferência em licitações públicas, possam crescer e ganhar escala, tornando-se mais eficientes e elevando a concorrência futura. Há ainda alguns casos de estímulo ao desenvolvimento de empresas que tenham por foco o meio ambiente ou produtos e serviços inovativos, além poucos casos de políticas inclusivas femininas e de políticas de responsabilidade social.

Como se percebe, o foco não é o protecionismo de empresas nacionais e locais, mas sim o estímulo a que firmas menores sejam motores da competição atual e futura ou, de forma ancilar, outras políticas que contribuam para o bem-estar do cidadão. De toda forma, mesmo tomando por base esses objetivos, há que se destacar que as evidências empíricas são muito fracas em favor da utilização de margem de preferências e os resultados esperados, na maioria das vezes, não são comprovados.

Ademais, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) adverte para o riscos de objetivos secundários se sobreporem ao principal objetivo, que é o de poupar recursos do Estado, principalmente quando as metas estabelecidas não são periodicamente avaliadas e revistas (ver: Reforming Pubic Procurement: Progress in Implementing the 2015 OECD Recommendation)

Com a recente aprovação no Congresso da nova lei de licitação (Projeto de Lei 4253/2020), a situação que já não era recomendável sob o ponto de vista técnico, tornou-se ainda pior. Isso porque, para início de conversa, o percentual máximo de margem de preferência, que era especificado na legislação como de 25%, agora será definido "em decisão fundamentada do Poder Executivo Federal" (inciso I do § 1º do art. 26 da nova lei) no caso de produtos manufaturados e serviços nacionais, o que amplia consideravelmente a discricionariedade do licitante.

Ademais, introduziu-se margem de preferência para "bens reciclados, recicláveis ou biodegradáveis, conforme regulamento" (inciso II do art. 26) e acrescentou-se possibilidade de margem de preferência de até 10% sobre o preço dos bens e serviços que não se enquadrem nessas duas primeiras hipóteses (inciso II do § 1º do art. 26).

No caso dos bens manufaturados nacionais e serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica no País, definidos conforme regulamento do Poder Executivo Federal, a margem de preferência foi estabelecida no limite de 20% (§ 2º do art. 26).

A nova legislação manteve a possibilidade de estender a Margem de Preferência para empresas de países do Mercosul, mas agora introduzindo a condição de reciprocidade (inciso II do § 1º do art. 26). Ademais, o uso deste instrumento também passa a ser permitido para Estados, Distrito Federal e Municípios, que poderão estabelecer margem de preferência de até 10% para bens manufaturados nacionais produzidos no Estado em que estejam situados ou Distrito Federal (§ 3º do art. 26).

No caso particular dos Municípios menores (com até 50 mil habitantes) também poderá, inclusive, ser definida margem de preferência de até 10% (dez por cento) para empresas neles sediadas (§ 4º do art. 26). Ou seja, balcanizaram-se as licitações também dentro do país, sendo que até mesmo uma maçã para merenda escolar a partir de agora poderá ter margem de preferência, encarecendo-a para as escolas.

Finalmente, a lei como está hoje, define em seu § 6º do art. 3º que a margem de preferência deve "ser estabelecida com base em estudos revistos periodicamente, em prazo não superior a cinco anos, que levem em consideração: a geração de emprego e renda; o efeito na arrecadação de tributos federais, estaduais e municipais; o desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País; o custo adicional dos produtos e serviços; e que em suas revisões, a análise retrospectiva de resultados".

Em alguma medida, estas condicionantes da Lei 8.666/93, especialmente a necessidade de checar seus resultados obtidos, reduziam um pouco o grau de discricionariedade na política protecionista da margem de preferência. Mas infelizmente estes dispositivos foram removidos na nova legislação, ampliando ainda mais a discricionariedade dos Executivos, agora nos três níveis de governo.

Em última instância, as mudanças aprovadas pela nova legislação introduzirão todo tipo de distorção no processo licitatório brasileiro. Favorecerão negociatas e a legalização da corrupção, elevarão os custos burocráticos dos processos e o número de questionamentos no judiciário e, principalmente, encarecerão as compras governamentais. E tudo isto, em contradição com a boa notícia da última semana da adesão plena do país ao Acordo de Compras Públicas (ACP) na Organização Mundial do Comércio (OMC), que tem fundamentalmente por objetivo elevar a concorrência nas licitações públicas e reduzir os gastos do Estado. (ver: Brasil abre compra pública a estrangeiro).

A bola agora está com o presidente Jair Bolsonaro que tem a possibilidade (e até o dever) de vetar este conjunto de jabutis que foram inseridos na nova lei de licitações. Se seu objetivo for realmente cuidar das contas públicas, como tem dito abertamente, o correto é vetar os dispositivos críticos aqui descritos.