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Por que Cade vê como "preocupante" exclusividade de restaurantes com iFood

17/03/2021 04h00

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No último dia 10 de março, a Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (SG/Cade) baixou medida preventiva (MP) impedindo que o aplicativo de entrega de comida iFood firme novos contratos que contenham acordo de exclusividade. A análise do caso teve como origem a denúncia apresentada por concorrente (Rappi Brasil) em setembro do ano passado. Contudo, como o próprio instrumento jurídico utilizado sugere, esta decisão é apenas liminar e tem por objetivo permitir que o órgão de defesa da concorrência analise com mais cuidado os termos contidos nos contratos do iFood.

Sob o ponto de vista da defesa da concorrência, cláusulas de exclusividade não são consideradas ilícitos per se, ou seja, não existe uma provisão legal que impeça previamente sua utilização. Aliás, esse tipo de cláusula é até comum e bem aceita em alguns mercados, principalmente quando geram eficiências, que, em alguma medida, acabam sendo também repassadas para o consumidor. Por exemplo, algum fabricante de determinado bem pode negociar com algum de seus distribuidores contratos com cláusula de exclusividade como forma de elevar as vendas de seus produtos e obter economias de escala na produção. Em geral, a contrapartida é a redução do preço para esse distribuidor, elevando a capacidade deste último em competir no mercado, dado que conseguirá ofertar o bem em questão por um preço menor. Ou seja, pressupondo que haja competição entre fabricantes e que os concorrentes possuam outros canais de distribuição, o resultado será o melhor para todos, inclusive para o consumidor.

Também é comum e aceitável usar cláusulas de exclusividade como forma de preservação de marca. Um bom exemplo é o caso de franquias, cujos investimentos em marketing, padronização e garantia da qualidade do que está sendo ofertado são fatores-chave no processo de concorrência no mercado. Imaginemos uma rede de franquias de lanchonetes. O franqueador é uma "espécie de gerente" dentro de um pool formado por franqueados. Ele é o responsável por definir qual será o padrão das lojas, quais os fornecedores, muitas vezes treinar os funcionários, alocar investimentos em publicidade, dentre outras tantas possíveis funções. Em última instância, ele é o responsável por centralizar as principais decisões, sendo os custos compartilhados entre todos os franqueados.

Esta lógica tem por objetivo garantir que o consumidor associe a marca em questão ao padrão pré-definido neste negócio. Assim, é razoável, por exemplo, que os insumos usados para preparar as refeições sejam exclusivamente comprados junto ao próprio franqueador ou por um fornecedor por ele escolhido. Essa situação é semelhante ao caso de concessionárias de veículos, que são, inclusive, obrigadas a comprar somente autopeças originais. Isso ocorre para evitar que eventuais problemas derivados de peças de baixa qualidade sejam indevidamente associados à marca.

A pergunta que fica, portanto, é quando a utilização de cláusula de exclusividade pode representar um problema à concorrência. A literatura antitruste especializada aponta para aquelas situações nas quais a incorporação deste tipo de cláusula fecha, mesmo que parcialmente, mercado para concorrentes ou elevam os custos dos competidores. Em geral são casos cuja empresa acusada da prática anticompetitiva tem elevada participação de mercado. Mais do que isso, os contratos de exclusividade firmados envolvem fornecedores de insumos ou distribuidores importantes, que somam parcela considerável do mercado, e cujos custos para desenvolver novos parceiros (fornecedores ou distribuidores) são elevados a ponto de reduzir a capacidade dos competidores concorrerem efetivamente no mercado.

Há ainda casos de exclusividade disfarçada de programa de fidelidade, que exigem metas de vendas inexequíveis, por longos períodos e que incorporam pesadas multas para quem queira sair do programa, gerando o que se conhece como efeito "aprisionamento" (lock-in). Muitas vezes, inclusive, os termos apresentados não são transparentes ou aparecem em anexos de contratos de difícil entendimento.

Claro que as empresas sempre podem apresentar ao Cade o argumento de eficiência, supostamente associado a cláusulas de exclusividade, mas quanto mais forem encontradas as características descritas nos últimos dois parágrafos, menor será a chance de que essa tese seja aceita. No limite, em casos de monopólios ou quase monopólio, a tendência é que nem mesmo eventuais eficiências sejam desconsideradas pelo órgão antitruste. Aliás, este é o padrão em muitas jurisdições, como, por exemplo, na União Europeia.

No caso específico do iFood, aparentemente a Superintendência-Geral do Cade entendeu que há fortes indícios de efeitos sobre a concorrência. Em nota técnica divulgada pelo órgão, foi pontuado que a empresa detém posição dominante, não só pela sua participação de mercado, mas também por desfrutar da "vantagem do pioneiro", já que foi a primeira a explorar, no Brasil, o mercado de serviço de entrega de comidas de restaurantes por meio de uma plataforma online. Ademais, foi destacado que mercado com características de plataformas que integram dois lados (consumidores e restaurantes) suscitam ainda mais preocupações, na medida em que podem criar naturalmente dificuldades à entrada de novas empresas

A Superintendência também manifestou preocupação com os prazos e termos dos contratos. Em particular, foi destacado que as cláusulas discutidas elevam os custos para os restaurantes que eventualmente queiram deixar de ser exclusivos, sinalizando que eventuais concorrentes do iFood poderão ter que incorrer em custos adicionais não triviais para também ter em sua plataforma estabelecimentos considerados estratégicos ("must-have"), ou seja, que atraem mais consumidores.

Em última instância, o Cade deve avaliar nos próximos meses se os contratos do iFood podem elevar os custos de operação de seus concorrentes ou mesmo fechar a porta para novas empresas que queiram participar desse mercado. Se a empresa for condenada, não será a primeira no Brasil por este tipo de conduta. A lista de empresas envolve, entre outras, Microsoft, Unilever, Positron (líder em alarmes automotivos) e Ambev, esta última depois do descumprimento de um acordo fechado anteriormente com o órgão antitruste, que envolvia revisar suas cláusulas de exclusividade.