Felipe Salto

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Opinião

Contabilidade criativa no vale-gás

O governo federal decidiu ampliar o auxílio para compra de botijões de gás, mais conhecido como vale-gás. Esbarrou, entretanto, na falta de espaço orçamentário e fiscal, dada a regra de gastos aprovada no ano passado (Lei Complementar nº 200/2023 - Novo Arcabouço Fiscal). Como se sabe, o país tem um déficit público elevado e o mar não está para peixe, já que a dívida pública continua a subir em relação ao PIB (Produto Interno Bruto).

No lugar de propor cortes em outras despesas, já que o auxílio para compra de gás passou a ser prioritário, apresentou-se um projeto de lei que fere a contabilidade pública e o princípio da publicidade ou transparência.

É a oportunidade para a volta da contabilidade criativa. Gastos com políticas públicas por fora do processo orçamentário típico. Esse filme é conhecido e o spoiler é: termina em tragédia. A área econômica do governo deveria fulminar esta proposta e colocar o gasto adicional do vale gás, politicamente legítimo, digo desde logo, no Orçamento público.

Vamos ter claro: novas prioridades de políticas públicas podem ser escolhidas pelos governos de plantão. A discussão do mérito não é objeto desta coluna. A eficácia do programa que se pretende ampliar ou criar deve ser alvo de avaliações e monitoramentos adequados pelo governo.

Meu ponto, aqui, é anterior. A forma pela qual uma nova prioridade das administrações públicas é financiada importa. Sob regras fiscais que exigem o controle do crescimento do gasto público e a geração de resultados primários (receitas menos despesas, sem contar os juros da dívida), a fim de atingir as condições de sustentabilidade fiscal, em determinado prazo, como aceitar despesas por fora do Orçamento público?

Se não há espaço orçamentário para financiar as novas despesas, é preciso cortar em outros programas. Esconder a conta sob o tapete da sala não é solução.

O limite legal de crescimento das despesas é calculado assim: a taxa de variação do teto para gastar deve ser igual a 70% vezes a variação passada da receita líquida (acumulada em dozes meses até junho do ano anterior). Essa regra não é negociável. Ela foi aprovada pelo Congresso Nacional, a partir da proposta do atual governo para substituir o antigo teto (Emenda Constitucional nº 95/2016).

Para ter claro, o que se pretende com o novo projeto de lei do vale-gás?

O objetivo é criar uma alternativa ao programa orçamentário de transferência de recursos para compra de botijões de gás por consumidores de baixa renda. A União renunciará a uma receita oriunda da exploração de petróleo, que deveria ir para o chamado Fundo Social. Com menores obrigações de repasse à União, as receitas seriam repassadas para a Caixa Econômica Federal subsidiar o consumo de gás, por meio de descontos no preço ao consumidor final.

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O programa custa algo como R$ 3,6 bilhões e poderá se aproximar de R$ 14 bilhões. Em que pese a proposta de alteração da legislação indicar o financiamento da expansão do vale gás como uma "possibilidade", o que será que vai acontecer, caro leitor?

Os mais de R$ 10 bilhões adicionais, potencialmente, poderão ser financiados por meio do novo modelo. Em lugar disso, deveriam ser integralmente registrados no Orçamento, limitados pelas regras fiscais, inclusive o teto de gastos do novo arcabouço fiscal.

Além disso, a União abdicará de uma receita importante e, tudo o mais constante, teria de compensar essa renúncia. O problema é que a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000), no seu artigo 14, trata apenas de renúncias tributárias. A saber, a receita de exploração de recursos naturais não é tributária; isto é, não deriva de um imposto, por exemplo.

Mas a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) de 2024, no artigo 135, contempla a hipótese de renúncias derivadas de medidas não tributárias.

Vou transcrever:

"Art. 135. As proposições legislativas, de que trata o art. 59 da Constituição, e os atos infralegais que impliquem redução de receitas, que não sejam renúncias previstas nos termos do disposto no art. 14 da Lei Complementar nº 101, de 2000 - Lei de Responsabilidade Fiscal, ou aumento de despesas, nos termos do disposto no art. 16 da referida Lei Complementar, deverão estar acompanhadas das estimativas de impacto orçamentário e financeiro para o exercício em que entrarão em vigor, e os dois subsequentes, com as premissas e metodologias de cálculo em grau de detalhamento suficiente para evidenciar a pertinência das estimativas elaboradas pelo órgão ou entidade proponente.
Parágrafo único. As proposições legislativas de iniciativa do Poder Executivo, as proposições submetidas à sanção, e os decretos, relacionados ao disposto no caput, deverão ser encaminhados para o Órgãos Centrais dos Sistemas de Planejamento e de Orçamento Federal, e de Administração Financeira Federal, para fins de verificação da adequação das estimativas e eventuais impactos sobre a meta de resultado primário do exercício e de outras regras fiscais vigentes aplicáveis".
(Grifos meus).

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À guisa de mostrar, de antemão, que os dispositivos acima não seriam um entrave à nova contabilidade criativa proposta, os idealizadores do projeto de lei contemplaram, na sua justificativa, a argumentação de que a abdicação de receita não seria líquida e certa. Ainda, que caso ocorresse, o mecanismo do contingenciamento de gastos (corte de despesa discricionária —não obrigatória— ao longo do exercício de execução do Orçamento) poderia ser usado.

Se a nova possibilidade de pagamento do vale-gás por meio de descontos subsidiados avançar, não há hipótese de as contas públicas passarem ilesas.

Vamos nos entender: a receita da União será menor e o gasto será o mesmo. Logo, será preciso encontrar outra receita para substituir a original, cortar algum outro gasto ou piorar a meta de resultado primário. Já o gasto adicional com o vale gás vai acontecer por meio da empresa estatal, que usará a receita "maior" para conceder os descontos.

E o porquê dessa engenharia contábil? Simples. Busca-se evitar que o gasto adicional seja contabilizado onde deveria, na despesa primária total sujeita ao novo arcabouço fiscal.

O nome disso é contabilidade criativa. Ou ela morre no nascedouro ou a caixa de Pandora terá sido aberta para novas despesas realizadas dessa mesma maneira. O céu é o limite. Ou seria o inferno?

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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