Felipe Salto

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Opinião

Haddad desengaveta a tesoura

O Ministro da Fazenda Fernando Haddad conseguiu um feito. Na última quinta-feira, anunciou um corte de gastos públicos de R$ 15 bilhões no Orçamento de 2024. Ao longo dos próximos meses, a dinâmica das receitas será decisiva para definir os próximos passos desse ajuste de curto prazo para entregar a meta zero de resultado primário (receitas menos despesas sem considerar os juros da dívida pública).

Ainda hoje, segunda-feira, deverá ser divulgado o Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias (RARDP), mais conhecido como relatório bimestral. Trata-se de um instrumento usado, a partir da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), para dar publicidade à execução orçamentária e prestar contas à sociedade sobre a factibilidade dos compromissos fixados em lei para a política fiscal.

Nele, vamos conhecer, por exemplo, os detalhes do corte de R$ 15 bilhões. Serão R$ 11,2 bilhões em bloqueio e R$ 3,8 bilhões em contingenciamento de despesas discricionárias (ou não obrigatórias). Na Warren Investimentos, minha equipe e eu projetávamos que o corte deveria ficar em R$ 16 bilhões, como uma primeira etapa do processo de ajuste necessário à entrega da meta fiscal anual, estimado por nós em R$ 27 bilhões.

A lógica prevaleceu.

O governo deve revisar parcialmente as projeções de receitas para o ano, que estavam bastante superestimadas no relatório bimestral de maio, mas não a ponto de levar à incorporação do cenário base que nós, por exemplo, mantemos aqui na corretora. As receitas do governo central líquidas de transferências a estados e municípios estavam programadas para crescer 10,5%, em termos reais, no cenário de maio do governo. Esse percentual deve cair para algo pouco acima de 9%, como vou mostrar.

Para fins de comparação, nós projetamos uma alta real de 8,2%. Antes, vale dizer, esperávamos pouco mais de 7%, mas revisamos para cima nossas estimativas, após os bons resultados da arrecadação observados no primeiro semestre.

Se, por um lado, o governo ainda tende a manter um número mais otimista para a receita, como mostrei, por outro, as superestimativas anteriores serão podadas. Isso imprimirá maior realismo ao quadro fiscal oficial. Daí porque se apresentou a necessidade de iniciar uma contenção de despesas programadas para o ano, isto é, despesas que, por não serem obrigatórias, estão sujeitas às tesouradas.

Como o corte anunciado totalizou R$ 3,8 bilhões, em termos de contingenciamento, e R$ 11,2 bilhões em bloqueio, concluímos que a projeção de receita líquida do governo deve ter diminuído em R$ 15,6 bilhões. Isso porque o governo projetava um déficit primário (sem contar gastos com o Rio Grande do Sul) de R$ 14,5 bilhões.

Como a meta é zero, mas pode chegar a menos R$ 28,8 bilhões (banda inferior), é provável que o governo tenha necessitado desse espaço de R$ 14,3 bilhões (28,8 menos 14,5) para comportar a queda da receita estimada. Se isso for verdade, o que poderemos confirmar quando o relatório bimestral for divulgado, ao longo do dia, a receita teria sido estimada para baixo em R$ 18,1 bilhões (14,3 mais 3,8 de contingenciamento).

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Mas resta ainda considerar que nem todo o espaço de piora do resultado primário deve ter sido usado para comportar queda de estimativa de receita, já que havia uma folga de R$ 2,5 bilhões no limite de gastos do Novo Arcabouço Fiscal. Sendo assim, a receita líquida cairia em R$ 15,6 bilhões (18,1 menos 2,5), na verdade. Dado isso, as projeções de receita do governo, como dito, devem indicar um crescimento real de pouco mais de 9%, e não mais superior a 10%, como no relatório bimestral de maio.

Essa radiografia dos números é fundamental para compreender o grau de realismo das contas do governo. Sem dúvida, o relatório bimestral trará um quadro mais fidedigno ao cenário que se desenha para o fechamento de 2024. Ainda restará algum corte de despesas, a nosso ver, de R$ 11 bilhões a R$ 12 bilhões, caso a nossa estimativa de receita se confirme, e não a do governo.
A vida da Fazenda não será fácil, mas o gol marcado com o anúncio do corte de R$ 15 bilhões tem de ser louvado.

A concretude que o mercado esperava para dar um novo voto de confiança à equipe econômica veio com esse anúncio. Ainda há muito por ser feito. A desoneração da folha de pagamentos segue descoberta, afetando a dinâmica das receitas. O STF deu prazo novo para que Legislativo e Executivo cheguem a um consenso: setembro próximo. Em parte, o próprio Ministro Haddad justificou que as projeções de receita estão (corretamente) considerando o custo da desoneração da folha de pagamentos sem qualquer compensação, dado que ela não existe.

Ou bem o governo usará um corte adicional de despesas para dar conta disso e de outras frustrações na arrecadação ou chegará a um acordo com o Presidente Rodrigo Pacheco, que não tem acatado as alternativas propostas pelo Executivo, a exemplo da Medida Provisória nº 1.227 (limitação dos créditos de PIS/PASEP e COFINS) e da tentativa de elevação das alíquotas da CSLL.

O artigo 14 da LRF obriga a que medidas de compensação, nestes casos de renúncias tributárias, venham pelo lado da própria receita. Contudo, no bojo do acordo firmado após a decisão liminar do Ministro Cristiano Zanin (que declarou inconstitucional a lei aprovada sem cálculo de impacto e sem compensação), a saída pelo corte de gastos seria bem-vinda e constitucionalmente adequada. O princípio da sustentabilidade fiscal, introduzido na Carta Magna pela Emenda Constitucional nº 109, estaria atendido.
São muitas as questões em aberto, mas o Ministro da Fazenda Fernando Haddad continua provando que é fiscalista e está no caminho certo. Desengavetar a tesoura foi o sinal mais claro disso.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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