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Gabriela Chaves

Quando a eficiência do mercado gera fome

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Imagem: iStock

17/09/2020 04h00

A gravidade do aumento nos preços dos alimentos básicos não pode ser minimizada como uma resposta normal dos mercados. "É a lei natural dos mercados, que os preços subam quando aumenta a demanda", repetem reiteradamente os economistas ortodoxos nos jornais e televisões. Sempre que presenciamos uma crise alimentar, assistimos a dogmas econômicos muito antigos tomarem fôlego e espaço na narrativa do problema.

A ameaça de crise alimentar não é uma surpresa. Desde os primeiros meses da pandemia, a Organização para a Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas (FAO) alertou sobre os riscos de enfrentar uma crise alimentar global sem precedentes. As medidas de isolamento social, indispensáveis para deter o avanço do vírus, prejudicam a capacidade das pessoas de colher, comprar e vender alimentos, geram interrupções na cadeia de abastecimento e levam para um deterioração na alimentação, favorecendo o consumo de alimentos menos saudáveis.

Além disso, o aumento do desemprego e a perda de renda colocam os alimentos fora do alcance de muitas pessoas. Indícios do aumento dos preços internacionais de alguns alimentos, como o arroz e o trigo, apareceram desde março, porém, ainda em níveis muito inferiores aos apresentados na crise alimentar de 2008-2011.

No Brasil, a crise atual parece ser de outra natureza. Para os entusiastas do mercado, não se trata de falta de capacidade para adquirir alimentos, porém, de seu contrário: Se as famílias brasileiras não podem comprar arroz é por culpa da ajuda emergencial que aumentou a demanda.

O Brasil, sem dúvida, é um caso particular a ser estudado: ele é um dos principais produtores e exportadores de alimentos do mundo. No Brasil, não há um problema de abastecimento como na África e nos países árabes, que dependem de importação de alimentos, como afirmou o ex-diretor da FAO em uma entrevista de abril deste ano.

Ao longo da quarentena, o país manteve as cadeias de fornecimento de alimentos, ainda que com os altos custos sanitários que isto podia representar, como aconteceu nos frigoríficos do sul do país que se tornaram focos de infecção massiva. E, ainda, presenciamos níveis recordes de exportação de produtos agroalimentares no período, sendo um dos poucos setores que mantiveram os números positivos em um contexto de depressão econômica generalizada: "Agro é pop, agro é tech, agro é tudo...agro é confiança", escutamos na televisão.

Atribuir o aumento do preço dos alimentos básicos ao auxílio emergencial é realizar uma leitura desleal da realidade brasileira. A ajuda emergencial teve um impacto significativo em muitas famílias, que, dentro de seus limites, permitiu a sobrevivência de milhões em meio à grave crise sanitária, social e econômica gerada pela pandemia da covid-19. Uma pesquisa do Ibope e Unicef, realizada em julho deste ano, mostrou que cerca de 9 milhões de brasileiros deixaram de realizar alguma refeição por falta de dinheiro.

É necessário olhar além da crise da covid-19. Precisamos compreender que existe uma estrutura de abastecimento nacional que há anos apoia continuamente o setor agroexportador, em combinação com o desmonte das instituições e estruturas que cuidavam da segurança alimentar e nutricional do país.

Não é uma novidade que, quando um país se especializa na produção de bens primários para exportação, isso acarreta custos extremamente pesados para essas sociedades, fazendo com que seu sistema produtivo caminhe na contramão das necessidades da maioria da população. Por esse motivo, não é incomum que um aumento na capacidade de exportação de alimentos seja acompanhado por uma redução dos alimentos disponíveis no mercado interno, um aumento da fome ou uma deterioração das condições de trabalho e de vida da maior parte da população.

Adicionalmente, desde os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro estamos presenciando a privatização da infraestrutura dos estoques estratégicos de alimentos. Os estoques públicos funcionam como um "amortecedor" de choques no mercado alimentar, ou seja, são uma reserva nacional, fundamental para que uma simples refeição não fique dependendo de eventos incontroláveis.

A formação de estoques implica em custos, alguns podem argumentar, mas, em momentos como o atual, podem trazer grandes benefícios. Os estoques nacionais de alimentos viabilizam a Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) e eram formados, em grande parte, pelo agora quase extinto Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA).

Como resultado das políticas federais, os estoques estão em mãos privadas, dificultando políticas nacionais emergenciais para combate dessa crise. O dólar elevado e a política de créditos produtivos têm favorecido a produção das commodities agrícolas para exportação em cerca de 80% da terra agrícola do país, em detrimento dos alimentos para o abastecimento interno, como o arroz e o feijão.

Não precisamos de patriotismo dos donos de supermercado, como sugere o presidente da República. Precisamos que a Política de Garantia de Preços Mínimos funcione. Para isso, é preciso que haja estoques, o que se torna um deságio diante da privatização progressiva da estrutura de armazenagem. Das 92 Unidades Armazenadoras mantidas, 27 foram vendidas, política que teve início ainda em 2016, com Blairo Maggi, um dos maiores produtores de soja do mundo, à frente do Ministério da Agricultura.

Choques de oferta e demanda acontecem em economias de mercado constantemente, mas isso não pode afetar a soberania alimentar. Entre abril e maio, por exemplo, Tailândia e Vietnã impuseram restrições à exportação para garantir, pasmem, o abastecimento interno em primeiro lugar, razão pela qual as cotações internacionais se elevaram. Sem uma vigilância pública e social, o mecanismo de mercado direciona os recursos produtivos e até os alimentos de uma sociedade para onde eles são mais lucrativos. Pouco importa se deixa um rastro de destruição ambiental e fome.

* Este texto foi escrito em conjunto com Andrea Santos Baca, doutora em Economia, professora da Universidade Federal do ABC e militante do Coletivo Rural-Urbano Solidariedade Orgânica (Cru Solo), e Marcos Henrique do E. Santo, economista e mestre em Economia Política pela PUC-SP. Atualmente é doutorando em História Econômica na FFLCH-USP, professor de Economia e consultor no setor agropecuário.