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José Paulo Kupfer

REPORTAGEM

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Alta do investimento em 2021 esconde situação real do país, diz economista

09/03/2022 04h00

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Existem conceitos e indicadores em economia que não são intuitivos. Inflação, por exemplo, talvez seja o melhor exemplo dessa característica do mundo econômico. Diferentemente do que muitos imaginam, inflação expressa o processo de alta de preços, não os preços eventualmente altos que se observa, cotidianamente, nos supermercados e feiras livres.

Nessa mesma categoria se insere a taxa de investimento, importante indicador da capacidade de crescimento da economia. Ela expressa a relação entre a FBCF (Formação Bruta de Capital Fixo) e o PIB (Produto Interno Bruto), em algum intervalo de tempo, normalmente um ano civil.

O economista Ricardo Barboza   - Divulgação - Divulgação
O economista Ricardo Barboza
Imagem: Divulgação

A FBCF engloba o volume total de recursos aplicados na criação, ampliação e modernização da capacidade produtiva. É a soma, em valores correntes, do dinheiro dirigido à construção de prédios - residenciais, fábricas, galpões etc. —, criação ou ampliação de infraestrutura — rodovias, ferroviárias, viadutos etc. — e fabricação ou importação de máquinas, equipamentos e processos processos de produção, para aumentar ou modernizar o parque produtivo nacional.

Nem sempre, porém, o aumento da taxa de investimento significa real expansão da capacidade de produção de uma economia. Para muitos especialistas, foi o que ocorreu em 2021. A taxa de investimento subiu de 16,6% do PIB em 2020 para 19,2% do PIB em 2021, mas a maior parte desse aumento refletiu a escalada da inflação no ano, uma variação acumulada de 10,06%, e um momento fortuito de alta forte nas cotações internacionais de commodities.

O economista Ricardo Menezes Barboza, pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas), especialista reputado em temas da macroeconomia brasileira, explica, na entrevista a seguir, por que a taxa de investimento de 2021 deve ser avaliada com ressalvas. "Desta vez", diz ele, "alguns fatores poluíram o que realmente está por trás do número calculado pelo IBGE". Para o economista, "só um terço da taxa de investimento de 2021 deve ser comemorado como indicador de melhoria nas condições de crescimento da economia".

Alguns economistas comemoraram o aumento da taxa de investimento em 2021, que mostrou avanço forte ante a taxa em 2020. Há motivos para comemorar?

Ricardo Barboza - Não se deveria comemorar a alta da taxa de investimento em 2021 a valor de face. Há quem considere que qualquer melhora nesse campo deve ser comemorada porque a taxa de investimento é a parcela da renda que a sociedade está dirigindo para a ampliação da capacidade produtiva. Para o senso comum, em resumo, a taxa de investimento quando avança indica que o futuro nos reserva coisas melhores. Mas, desta vez em particular, alguns fatores estão poluindo o que realmente está por trás do número calculado pelo IBGE.

Que fatores são esses?

Em primeiro lugar, há um componente de inflação mais alta aumentando a taxa de 2021. A taxa de investimentos é calculada a preços correntes, ou seja, calcula-se o valor nominal dos investimentos na economia e divide-se pelo valor nominal do PIB. Quando os preços dos investimentos, por qualquer razão, aumentam mais do que os preços considerados no PIB, parte da taxa de investimento aumenta por causa dessa diferença de preços. Geralmente, as diferenças entre a inflação do investimento e a do PIB não são significativas, mas, desta vez, os preços dos investimentos aumentaram muito mais do que os preços que entram no PIB.

Que diferença de preços mais significativa foi essa?

Em 2021, os preços do PIB, o deflator do PIB, como se diz no jargão, aumentaram 11,1%. O deflator do investimento aumentou 14,7%. Essa diferença fez com que a taxa de investimento a preços correntes ficasse bem mais alta. Não se deveria comemorar algo que aconteceu porque a inflação aumentou, em que a causa do aumento é a inflação.

Por que desta vez a inflação do investimento foi tão maior do que a inflação média geral da produção, do PIB, como um todo?

Em primeiro lugar porque a indústria brasileira está passando por um momento de grandes dificuldades com suprimentos, enfrenta um problema que é global. A oferta está mais restrita e isso faz aumentar os preços dos produtos industriais, máquinas e equipamentos, que entram no investimento.

Um segundo fator de aumento dos preços dos investimentos, esse mais doméstico, vem do fato de que os equipamento produzidos aqui concorrem com seus similares importados, são bens chamados "comerciáveis" ("tradables", em inglês, como são normalmente denominados na literatura econômica). Como a taxa de câmbio desvalorizou nos últimos dois anos, os preços dos produtos importados aumentaram registraram maiores aumentos nos bens "tradables" do que naqueles que não são afetados pela oferta externa e, como todos os demais, entram na composição do PIB.

Além dessas diferenças que vão levar a uma inflação mais alta no investimento, há outros fatores que afetam a taxa de investimento, sem que se possa dizer que as inversões se traduziram, de fato, em aumento de produção?

Sim, é o caso das importações de plataformas de petróleo. Isso entra na composição do investimento, mas, na verdade, essas importações não são reais. As plataformas já estão aqui e essas "importações" são apenas contábeis. De uns anos para cá, basicamente por questões tributárias, redução de tributos na produção de plataformas, a legislação passou a considerar plataformas que já estavam operantes no país como importações, como se fossem investimento.

Essa manobra tributária tem inflado indevidamente o investimento, medido pelo volume da FBCF, porque resulta numa operação meramente contábil. Não houve aquisição de uma nova plataforma, a plataforma já existia. A operação, enfim, não expressa um investimento novo.

Tudo bem pesado, a mudança de preços relativos nos investimentos e a plataformas de petróleo explicam cerca de um terço do aumento da taxa de investimento de 2019 para cá.

E os outros dois terços?

Tem ainda uma outra parte no conjunto do aumento na taxa de investimento que não deveríamos comemorar. Essa parte é fortuita, uma espécie de golpe de sorte, e tem a ver com o aumento brutal do preços internacionais das commodities. É um movimento que vem de antes, mas se consolidou na pandemia e está explodindo agora com a guerra na Ucrânia.

O fato é que a FBCF no Brasil, assim como o PIB, é altamente sensível às variações nas cotações internacionais de commodities. A correlação entre a variação do PIB brasileiro e os dos principais índices agregados de commodities, pelo menos de 2005 para cá, é estreita, andam de mãos dadas. Também temos observado que a FBCF é o componente da demanda agregada, vamos dizer do PIB pelo lado da demanda, mais sensível às variações dos preços de commodities.

A aquisição de máquinas e equipamentos, parte relevante do investimento, se traduz, diante dessa correlação com os preços de commodities, na ampliação e modernização do parque de máquinas agrícolas. Também se traduz pela produção de mais caminhões, com os quais é feito o escoamento da produção de commodities.

Quando se pensa em investimento, pensa-se em abertura e ampliação de fábricas, modernização do parque existente, construção de prédios, galpões, armazéns, etc., em infraestrutura, mais crescimento, mais emprego e mais renda. É isso que está ocorrendo?

Não é isso que está ocorrendo, com a qualidade descrita na pergunta. Não são novas fábricas sendo construídas, equipamentos de alto conteúdo tecnológico sendo comprado, coisas, enfim, que levariam a aumentar nossa capacidade produtiva, nossa produtividade.

A taxa de investimento de 2021, resumindo, não vai alterar o padrão de baixo crescimento que a economia brasileira experimenta nos últimos 10 anos.

Não acredito que as informações fornecidas pela taxa de investimento do ano passado permitam vislumbrar alterações significativas no processo de semi-estagnação experimentado pela economia brasileira, nesses dez anos, quando a atividade não cresceu em média mais de 1,5% ao ano. Até porque a alta registrada na taxa de investimento parece temporária e tende a reverter. Projeções para 2022, por exemplo, são de queda no investimento. O avanço de 2021 tem cara de ter sido um soluço na série, não um movimento sustentado.

Mas, não tem uma parte do investimento em 2021 que sustente algum otimismo?

Estamos realmente observando alguma robustez na construção civil, que é um item importante da FBCF. Isso está sendo influenciado pela queda na taxa de juros, que estimulou a demanda por financiamento imobiliário. De fato, a construção, principalmente residencial, avançou em 2021.

Outro movimento positivo veio de empresas que investiram mais no ano passado. Esse é um ponto bem interessante. Quando se olha para o retrato geral da da economia brasileira, percebe-se que a massa salarial está perdendo participação no PIB, mas, em contrapartida, o excedente operacional, o lucro das empresas, está aumentando.

As empresas, principalmente as maiores, estão menos alavancadas. Quando a inflação aumenta, as empresas ganham mais em termos nominais, reduzem dívidas e, assim, obtêm mais sobras para investir. Isso aconteceu no ano passado. Estimo que o último terço do aumento da taxa de investimento venha desse processo, que tem ampliado o investimento e deve ser comemorado.

Houve, tudo considerado, aumento do investimento suficiente para superar as perdas dos últimos anos?

O investimento aumentou nos últimos dois anos, mas em ritmo insuficiente para superar o melhor momento antes da crise que começou depois do primeiro trimestre de 2014. É como se estivéssemos, no caso do investimento, no patamar 100, no primeiro trimestre de 2014, e hoje o nível ainda fosse de 89.

Resumindo, houve recuperação em relação ao período da pandemia, mas não na comparação com o pico antes do já longo período de recessão e baixo crescimento dos últimos oito anos. O volume de investimento em 2021 ainda está 11% abaixo do registrado no primeiro trimestre de 2014.

O mesmo vale para o PIB. A economia se recuperou do tombo causado pela pandemia, mas ainda não retornou ao nível do início de 2014. O PIB ainda está 3% abaixo daquele pico, mostrando que a economia brasileira está há quase uma década com carregando um excesso de ociosidade.