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José Paulo Kupfer

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Proposta de Guedes de corte no salário mínimo é volta ao tempo da ditadura

22/10/2022 08h18

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A divulgação de planos do ministro da Economia, Paulo Guedes, para revogar a regra vigente de reajuste do salário mínimo, que determina reajuste pela inflação, medida pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) do ano anterior, causou uma onda de desmentidos do presidente Jair Bolsonaro e do próprio Guedes. Deflagrou também uma sucessão de promessas de promover, em 2023, ganhos reais para o salário mínimo, o que não ocorreu em nenhum dos quatro anos do primeiro mandato de Bolsonaro.

Reportagem das jornalistas Idiana Tomazelli e Julianna Sofia, no jornal "Folha de S. Paulo", nesta quarta-feira (19) revelou parte dos planos de Guedes para desindexar o salário mínimo e desvinculá-lo dos reajustes de aposentadorias e pensões do INSS, o mesmo valendo para os pagamentos do BPC (Benefício de Prestação Continuada). Antes do vazamento dos estudos e dos desmentidos, a ideia era apresentar a proposta no dia seguinte ao do segundo turno das eleições, caso, evidentemente, Bolsonaro saísse vitorioso das urnas.

O plano de Guedes prevê a correção do salário mínimo e das aposentadorias a ele atreladas não mais pela inflação passada, mas por algum fator que reflita expectativas futuras da inflação — a primeira hipótese é atrelar o reajuste à meta de inflação do próprio ano, medida pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo). O "novo marco fiscal", como o projeto estaria sendo tratado por Guedes, permitiria acomodar cerca de R$ 100 bilhões em gastos prometidos por Bolsonaro para 2023, como a manutenção do Auxílio Brasil em R$ 600 mensais e o pagamento de 13º salário a mulheres beneficiárias do Auxílio. Seria necessário aprovar uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição), pois o texto constitucional garante a pelo menos a reposição do poder de compra do salário mínimo pela inflação do ano anterior.

Com a desvinculação pretendida, fica claríssimo que Guedes objetiva assegurar, à custa do arrocho na renda dos mais pobres, o espaço fiscal para absorver a montanha de dinheiro público despejado, em pleno período eleitoral, numa indisfarçada tentativa de compra de votos, inédita em sua amplitude. Se a proposta for levada adiante, mais de 70 milhões de brasileiros adultos e suas famílias serão diretamente atingidos e sofrerão inevitáveis perdas de poder aquisitivo.

No Brasil, 35 milhões de trabalhadores, quase 40% da população ocupada, ganham o mínimo. Outros 36 milhões de aposentados, pensionistas, enfermos e inválidos segurados pelo INSS também recebem o mínimo. Mas todos os trabalhadores -- e, enfim, a economia como em seu conjunto -- acabam afetados pelas políticas de correção do salário mínimo.

Cálculos do Made/Fea-USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades, da Faculdade de Economia e Administração, da Universidade de São Paulo) não deixam a menor margem de dúvida em relação ao arrocho salarial contido na proposta de Guedes. De 2002 a 2022, o salário mínimo evoluiu de R$ 200 a R$ 1212. No mesmo período, se o reajuste do salário mínimo seguisse a evolução da inflação esperada, medida pelo IPCA, de R$ 200 em 2002, o mínimo não passaria de R$ 502, em 2022, nem metade do valor atual.

É simples de entender o mecanismo de arrocho. Em 2022, se a correção do salário mínimo e dos benefícios a ele atrelados, como as aposentadorias, o BCP e o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), seguisse o centro do sistema de metas de inflação, o reajuste teria sido de 3,5%. As projeções mais atualizadas marcam uma inflação de 5,6% no fim de 2022. A se confirmar, será o segundo ano o seguido de estouro do teto de intervalo de tolerância do sistema.

A ideia de reajustar salários e benefícios, a partir do mínimo, com base em indexadores de expectativas de inflação, apresentada por Guedes, não é nova. Como lembra o economista André Roncaglia, professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), a fórmula de correção do salário mínimo proposta por Guedes é uma variante da lógica adotada pela ditadura de 1964, logo após o golpe militar que derrubou o regime democrático no Brasil, expressa no Paeg (Plano de Ação Econômica do Governo), o programa que orientou a política econômica, nos primeiros anos do regime.

No programa de estabilização adotado, a contenção de salários era peça central. Com isso, em simultâneo com o crescimento acelerado do período do "milagre econômico", produziu-se um grande aumento das desigualdades de renda.

Na política salarial da ditadura, a negociação salarial entre empresas e sindicatos foi substituída por uma regra de correção. A regra levava em consideração o salário real nos dois anos anteriores — o que, num ambiente de inflação ainda em aceleração, comprimia o valor encontrado.

Utilizava também um índice arbitrário de produtividade, sempre abaixo da variação do PIB (Produto Interno Bruto). E, como Guedes propõe, aplicava um "resíduo inflacionário", com origem numa expectativa de inflação para o ano seguinte, que sempre terminava sendo inferior à inflação do período.

A variante de estabilização da economia, com redução do Estado, inspirada no Paeg da ditadura e arquitetada por Guedes, recebeu dele mesmo o nome de "Plano 3D". Suas linhas gerais foram divulgadas logo na primeira entrevista de Guedes já ministro indicado, e como todo poderoso "Posto Ipiranga" de Bolsonaro na economia, ainda em 2018. Ainda que Guedes jamais tenha renunciado a ele, no primeiro mandato de Bolsonaro, seu plano jamais passou nem perto de ser implantado.

Os "3D" significam desindexar, desvincular e descentralizar. Guedes sempre sonhou com desindexar gastos públicos de reajustes pela inflação, sendo o salário mínimo o caso mais notório. O próximo passo seria desvincular despesas atreladas à inflação, caso da correção dos benefícios previdenciários e da observação de pisos obrigatórios constitucionais para, por exemplo, saúde e educação. Já descentralizar implicaria rever destinações obrigatórias de recursos federais a estados e municípios.

Apesar dos desmentidos de Bolsonaro, de que não se cogita arrochar salários, num eventual segundo mandato, a proposta de Guedes se encaixa com perfeição na obsessão do ministro com a austeridade fiscal, expressa pela redução do tamanho do Estado e da abdicação de suas funções sociais.

Ocorre que, numa sociedade com imensa pobreza e desigualdades chocantes, o sonho de Guedes é politicamente inviável, e não tem como ficar de pé nem em alguma realidade paralela, pelo menos enquanto houver algum resquício de democracia. A verdade é que, do ponto de vista de seus objetivos ideológicos maiores, Guedes fracassou. O ministro termina o mandato com poder reduzido, mas ainda peça importante de um governo populista, que quebrou as regras de controle fiscal, em contradição com seu declarado ideário.