Por que inventei 'infância pobre' para me encaixar em estereótipo de negra bem-sucedida
Nunca tive infância pobre. Mas a "superação da pobreza" fez parte de como relatei minha biografia ao longo de minha vida, muitas vezes, respondendo a perguntas sobre "como cheguei aonde cheguei".
Nasci em meados dos anos 70, em uma família de 11 irmãos na recém-construída Brasília. Meu pai, engenheiro agrimensor, minha mãe, dona de casa. Não podia ser pobre um homem negro que conseguisse manter a esposa e tantos filhos com três carros, casa própria, eletrodomésticos, empregados e viagens de férias anuais.
Minha mãe contava com duas empregadas para ajudá-la com as crianças durante as longas ausências dele, que, com seu teodolito em punho, liderava medições de terras no Planalto Central. Além das duas moças, havia um caseiro que também atuava como motorista para o carro esportivo e as duas kombis de propriedade do meu pai, utilizadas especialmente para conduzir sua "creche" - como ele se referia a nós, filhos.
Nossa vida mudou após a morte repentina de meu pai que, em 1988, aos 52 anos, perdeu a vida estupidamente em um acidente de carro. Meses antes, meu irmão mais velho morrera de diabetes aos 21 anos.
Minha mãe não conseguiu manter o padrão que meu pai nos proporcionara. Precisou trabalhar como feirante. Eu tinha 13 anos e, com irmãos mais velhos, passei a ajudá-la a manter a família. Despencamos do topo da pirâmide.
Olhando para essas duas etapas da minha vida, começo a me perguntar: por que me apeguei à narrativa da pobreza que enfrentei na adolescência e não à da sólida formação de classe média alta na infância que relatei acima - e que dificilmente menciono?
A resposta está na incredulidade que me acostumei a enfrentar desde cedo.
Eu me lembro do dia em que meu pai teve de ir à escola para confirmar a história de meu irmão de que havíamos viajado até o Rio de Janeiro e visto o oceano Atlântico.
O relato dele após as férias foi recebido com gargalhadas pelos colegas. Fomos tachados de mentirosos. Mencionar qualquer sinal da vida privilegiada que tínhamos era tratado com desconfiança, chacota. "Vocês são parentes do Pelé?", diziam alguns com sarcasmo.
Curiosamente, só parei para pensar sobre isso quando, ao trabalhar com a BBC Brasil na série de reportagens sobre os negros que fazem parte do 1% mais rico do país, nos deparamos com uma foto do meu pai, cercado pelos filhos na frente da estante de mogno que tínhamos na sala com o melhor da literatura brasileira e mundial.
"Que família pobre tem uma estante de mogno?", foi a pergunta feita pela editora, lembrando de uma conversa inicial que tivemos em que relatei as dificuldades enfrentadas por minha família.
Transitando em lugares de elite, seja no trabalho, socialmente e até mesmo no bairro onde moro, noto que, aos olhos do senso comum, uma mulher negra culta, bem arrumada e autoconfiante causa espanto a muita gente.
Quase sempre, a primeira impressão é de que sou "metida" ou arrogante. É o estereótipo: se uma negra não é subalterna, ela é subversiva. E como tal, antipática e perigosa. É preciso se rebaixar para não incomodar.
Passei por experiências traumáticas na universidade e no trabalho. Já jornalista, tive uma chefe que ridicularizava minhas opiniões, usando de sarcasmo disfarçado de brincadeira. Em reuniões de pauta, quando eu falava alguma coisa, ela me cortava dizendo: "Ah, essa neguinha, eu vou amarrá-la no tronco, está falando demais".
Todos riam, menos eu. Aquilo doía. Impassível, eu pedia para continuar, no que ela respondia: "Vai minha Glória Maria, continua, mas não muito, senão o tronco vai ter que ser muito grosso". Sabe como é, brincadeiras carinhosas (afinal, eu era sua Glória Maria, o que subentendia competência) perdoam qualquer discriminação.
Esses fatos infelizmente não eram isolados. Precisei sair do país e me tornar estrangeira para descobrir que a cor da minha pele e meu jeito de ser não tinham a menor importância aos olhos das pessoas diferentes do meu convívio no Brasil.
Fui morar na Dinamarca, país predominantemente branco. Lá, fiz meu mestrado em Comunicação. Tinha colegas e professores de todas as cores e partes do planeta. Todos falavam inglês com sotaque (até os dinamarqueses).
Todo mundo ali era "estranho". E, ali, estranhamente, eu me sentia "normal". Minhas opiniões eram ouvidas e eu não percebia aquela antipatia instantânea que eu costumava provocar. Naquele lugar, minha cor não era relevante, não fazia a menor diferença.
Tenho muita fé que meu filho possa se sentir assim em seu próprio país. Acho que, para chegar lá, precisamos continuar denunciando o racismo. É chocante ver a tentativa constante de algumas pessoas de classificar de "mimimi" qualquer tentativa de grupos que são reconhecidamente alvo de discriminação, entre eles os negros, de denunciar o que é, em muitos casos, crime.
"É mimimi", bradam principalmente sob a proteção da distância e muitas vezes do anonimato da internet. Querem "mimimizar", ou seja, tachar de "mimimi" para desprezar experiências fundamentais para que a sociedade brasileira caminhe não para a desunião, mas para cicratizar feridas e evitar novas. É "mimimi" reclamar da piada do tronco?
Mas não podemos reservar para o negro apenas o espaço do sofrimento, da humilhação. As histórias positivas são fundamentais, não podem ser ignoradas. Tentei trazer um pouco desse olhar para a série da BBC Brasil, que me levou a analisar minha própria história.
Não vou mais pedir licença para entrar no clube do 1%, de cabeça baixa, falando de superação da pobreza e provações. Para não ser chamada de mentirosa, para não ouvir as gargalhadas que meu irmão ouviu ao relatar nossa viagem ao Atlântico, acabei adotando um discurso mentiroso.
Da próxima vez que alguém me perguntar como cheguei aonde cheguei, responderei que sim, passamos por dificuldades, mas não cheguei a lugar nenhum, já nasci aqui entre o 1%, com um padrão de vida que gostaria de ver compartilhado por todos os brasileiros.
*Noemia Colonna é jornalista pela Universidade Católica de Brasília, mestre em Comunicação pela Universidade de Copenhague, professora de Mídia no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e servidora pública federal. Por dez anos foi apresentadora e profissional de audiovisual em TVs públicas e institucionais. Atualmente, faz pesquisa sobre Mídia, Gênero e Raça e é colaboradora da BBC Brasil. Este artigo faz parte da série que mergulha no universo dos negros que fazem parte do 1% mais rico do Brasil.
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