As lições da Islândia no combate à diferença salarial entre homens e mulheres
"Islândia torna ilegal pagar às mulheres menos que os homens", afirmaram as manchetes em janeiro, em meio a uma enorme comemoração nas redes sociais.
Mas a realidade é que na maioria dos países já é ilegal pagar menos às mulheres em relação aos homens. De Rússia a Ruanda, é contra a lei. A maioria das nações (e não apenas na Escandinávia, o paraíso do trabalhador) tem algum tipo de lei antidiscriminatória há décadas.
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No entanto, até mesmo a otimista Pat Milligan, líder global da consultoria multinacional Mercer, citou algumas descobertas frustrantes do último relatório do Fórum Econômico Mundial.
Os resultados apontam um recuo na igualdade de gênero nos setores de saúde, educação, política e mercado de trabalho pela primeira vez desde 2006. Segundo cálculos do Fórum, uma diferença de 32% ainda persiste, e o retrocesso se deve em parte a um declínio da igualdade de gênero no trabalho.
Como muitas outras empresas, a BBC também faz parte desse debate. Semanas atrás, a correspondente Carrie Gracie anunciou que deixaria o cargo de editora de China como forma de protesto pela desigualdade de seu salário em relação a homens em posições semelhantes. Na ocasião, o diretor-geral da BBC, Tony Hall, respondeu que a companhia "cometeu alguns erros" e acrescentou "admirar a coragem" da jornalista, mas afirmou que o sistema interno para lidar com queixas salariais "funciona" e que a igualdade está "no âmago do que defendemos".
O mais recente passo radical da Islândia é que o país está tentando sacudir a questão legal. O que faz o plano do país diferente é que o ônus não ficará mais sobre a funcionária, que precisa comprovar que recebe menos - o que pode demandar anos de batalhas jurídicas. Agora, é o (a) chefe que precisa provar que paga seus trabalhadores igualmente.
Mas isso é realmente tão radical? Será que esse modelo pode ser copiado por países maiores?
Onde reside a novidade
"A maioria dos países têm leis que garantem pagamentos iguais, o Reino Unido por exemplo as aprovou em 1970", diz Daphne Romney QC, uma das principais advogadas britânicas especializadas em litígio de pagamento igualitário.
Acima disso, diz ela, há o direito da União Europeia de pagamento igualitário, o que dá aos trabalhadores o direito de ir a uma corte civil ou um tribunal.
Apesar de muitos países permitirem que funcionários tomem atitudes contra empregadores, o problema é que "leva anos de trabalho duro para se chegar até a corte, quanto mais de chegar ao ponto de compensação".
"A Islândia tornou uma ofensa criminal empregadores não tomarem atitudes em relação ao pagamento desigual. Eles de fato tornaram isso uma violação de exigências de saúde e segurança", diz Romney, acrescentando que haverá uma punição para os que não tomarem atitudes contra o problema.
Então por que esse modelo não é aplicado em outros países?
"Eu acho que é bastante radical, mas para ser sincera não acho que (uma lei como essa) passaria no Reino Unido. As novas regulações de salário igualitário do Reino Unido só serão aplicadas a 34% dos funcionários por exemplo em firmas com mais de 250 funcionários", diz Romney.
Ela se refere a uma lei britânica de 2016, segundo a qual todas as grandes empresas - cerca de 9 mil companhias - terão de reportar informações a respeito de salários. A ideia é colocar empresas grandes sob o holofote e abertas a escrutínio público.
Mas Romney acha que isso é o mais longe que o país chegará: ela acredita que o Partido Conservador, da primeira-ministra Theresa May, opõe-se a qualquer mudança que possa avançar disso, já que poderia trazer custos para o setor financeiro.
No Brasil, as mulheres ganham menos do que os homens em todos os cargos, segundo uma pesquisa da empresa Catho. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) reforçam essa disparidade quando observamos a análise da renda da população: a renda média nacional do brasileiro é de R$ 2.043, mas os homens ganham em média R$ 2.251 e as mulheres, R$ 1.762.
Avanços em outros lugares
Se o Reino Unido não deve seguir o modelo islandês, há outros países tentando algo parecido?
A professora Sarah Kaplan, diretora do Instituto de Gênero e Economia da Universidade de Toronto aponta para outro modelo que precede a legislação da Islândia - o Canadá, que está avançando na batalha de acabar com a diferença de pagamentos desiguais entre homens e mulheres.
As políticas em Ontário e Quebec, por exemplo, têm foco no salário igual para o mesmo trabalho (por meio de suas leis de direitos humanos) e também de pagamento igual para o mesmo valor de trabalho, sem necessariamente ser o mesmo cargo (pela legislação de igualdade de pagamento).
Em Ontário, a Lei 148 de Locais de Trabalho Justo inclui uma série de novas regras, desde criando previsões para funcionários que suspeitam que não receberam um salário justo e querem pedir a avaliação do caso até o banimento de empregadores que forçam funcionárias a usar salto alto.
"Isso é mais avançado que o escopo da legislação islandesa, que só tem a primeira parte", diz ela. "Mas a Islândia tem multas e relatórios, o que não temos no Canadá", pondera.
Kaplan diz que algumas das leis do Canadá exigem detalhamento individual dos pagamentos de uma companhia, e que a maioria delas obedece.
Em alguns lugares, a diferença de gênero foi levemente revertida. Um estudo de 2016 indicou que funcionárias em tempo integral na Irlanda do Norte ganham em média 3,6% a mais que seus colegas homens - apesar da diferença entre o ganho por hora dos diferentes gêneros continue muito diferente se as mulheres se tornam mães.
Mas isso pode ter sido causado por uma proporção maior de mulheres trabalhando em cargos do setor público no país, que têm salários melhores que os equivalentes no setor privado.
Nos EUA, alguns Estados, como o de Massachusetts, proibiram empresas de perguntar sobre o salários atuais de possíveis novos funcionários. Isso é algo que nem Islândia ou Canadá têm. "É uma colcha de retalhos de soluções, nenhuma delas consegue ser completamente eficaz sem as outras. Nenhum país ou jurisdição colocou em prática todas elas", afirma Kaplan.
Richard Reeves, um membro sênior da Instituição Brookings que estuda a diferença de salários em variados setores e em diferentes países, concorda. Ele diz que, por mais que a Islândia esteja "à frente nas reformas" e que seja capaz de acabar com as diferenças de salário no futuro, não é certo presumir que as políticas desse país possam ser aplicadas em outro lugar.
"No entanto, há lições úteis a serem aprendidas aqui, incluindo que a diferença de salário não acontece sozinha", afirma. Ele acredita quanto mais responsabilidade e transparência, melhor: no Reino Unido, por exemplo, relatórios obrigatórios de gênero ajudarão. "Apenas mostrar o nível do problema é um passo importante."
A própria pesquisa de Reeve sugere que a diferença só diminuirá com uma mudança fundamental não apenas nas práticas de organização, mas de pressuposições culturais sobre os papéis de homens e mulheres no trabalho e no lar.
"As mulheres continuam equilibrando a vida profissional e doméstica, o que impacta seu salário e avanço de carreira. Os homens não estão fazendo o mesmo. A revolução que precisamos agora envolve modelos de masculinidade, não só modelos de negócios."
O modelo a se seguir?
A pequena Islândia, com uma população de 336.483 habitantes, é um peso-pesado na igualdade de gênero. É o país com a menor desigualdade do tipo do mundo por nove anos seguidos, segundo um relatório internacional anual. E, segundo dados da União Europeia, é a líder mundial na inclusão de mulheres na força de trabalho, com uma participação maior que 80% em 2017.
Isso coloca a Islândia não apenas no topo de todos os outros países comparáveis mas também como a nação com a taxa mais alta de participação entre todos os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).
Desde 1970, mais e mais mulheres islandesas entraram no mercado de trabalho e lá ficaram. Isso pode ser atribuído a várias decisões políticas, como o direito legal de mães voltarem ao trabalho após ter filhos.
Thorgerdur Einarsdóttir, professora de gênero da Universidade da Islândia, diz que um movimento forte de mulheres e uma enorme pressão de grupos feministas estão por trás das forças políticas que introduziram uma série de medidas radicais relacionadas a assuntos de gênero na Islândia, como a licença-paternidade e cotas de gênero.
Ela acredita que a cultura islandesa no geral também é um fator significativo nessa mudança. "Há um legado histórico de mulheres fortes que inspiraram outras mulheres aqui", diz ela, citando a eleição da primeira presidente mulher eleita democraticamente, Vigdis Finnbogadottir, em 1980.
Ela cita outros acontecimentos também, como o Dia de Folga das Mulheres em 1975, uma greve na qual metade do país parou e que foi repetida várias vezes.
"Talvez também tenha a ver o tamanho pequeno do país, as proximidades e o fluxo fácil de informação. É muito fácil mobilizar ações quando diferentes grupos de mulheres se unem aqui."
Revertendo a tendência
E por que as pessoas deveriam se importar? Porque o argumento acadêmico para extrapolar esse sucesso - apesar da grande advertência de que nenhuma mulher islandesa acredita na sua utopia ainda - é bem embasado.
Mais mulheres contribuindo para a economia global pode evitar uma nova recessão global. Além disso, trazer o mesmo número de mulheres que homens para o mercado de trabalho seria o equivalente a colocar mais uma China e mais um Estados Unidos no Produto Interno Bruto (PIB) da economia mundial.
Um "cenário potencial completo", no qual as mulheres têm os mesmos papéis que os homens no mercado de trabalho, poderia acrescentar US$ 28 trilhões ao PIB global anual até 2025, de acordo com uma pesquisa da consultoria McKinsey.
Então, por mais que se mudar para a Islândia pode não ser uma ideia possível para a maioria das pessoas, aprender um pouco com o modelo islandês pode ser um excelente começo.
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