Como a cultura do assédio persistiu nas fábricas da Ford
Os empregos eram os melhores que elas jamais teriam, recebendo salários na tabela do sindicato para trabalhar na Ford, uma das empresas mais famosas dos EUA. Mas em duas fábricas em Chicago as mulheres encontraram perigo.
Chefes e colegas de trabalho as tratavam como sua propriedade ou presa. Os homens comentavam cruamente sobre seus seios e nádegas. Apalpavam as mulheres, encostavam-se nelas, simulavam atos sexuais ou se masturbavam na frente delas. Os supervisores trocavam tarefas melhores por sexo e puniam as que recusavam.
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Isso foi um quarto de século atrás. Hoje, as mulheres nessas fábricas dizem que foram submetidas a muitos abusos semelhantes. E, assim como as que se queixaram antes delas, disseram que foram ridicularizadas, desprezadas, ameaçadas e isoladas. Uma contou que foi chamada de "puta dedo-duro", enquanto outra foi acusada de "estuprar a empresa". Muitos dos homens que as perseguiram, segundo elas, mantiveram seus empregos.
Em agosto, a agência federal que combate a discriminação no local de trabalho, a Comissão para Igualdade nas Oportunidades de Trabalho (EEOC na sigla em inglês), fez um acordo de US$ 10 milhões com a Ford por assédio sexual e racial nas duas fábricas de Chicago. Um processo está nos tribunais. Isso também já aconteceu antes: nos anos 1990, uma série de ações legais e uma investigação da EEOC resultaram em um acordo de US$ 22 milhões e um compromisso da Ford de reprimir o assédio.
Para Sharon Dunn, que processou a Ford naquela época, o novo processo foi um novo golpe.
Por todo o bem que deveria sair do que aconteceu conosco, parece que a Ford não fez nada", disse ela. "Se eu tivesse aquela opção hoje, não diria uma maldita palavra.
Sharon Dunn
Sua história revela a persistência do assédio em uma indústria que já foi reserva masculina, onde os abusos podem ser especialmente agressivos. Para as mulheres da Ford, o assédio perdurou apesar de elas trabalharem em uma multinacional com uma operação profissional de recursos humanos, apesar de serem membros de um dos sindicatos mais poderosos do país, apesar de uma agência federal e depois um juiz federal as terem apoiado, e mesmo depois que monitores independentes policiaram a fábrica durante vários anos.
Em um momento em que tanta gente pede que o assédio sexual não seja mais tolerado, a história das fábricas da Ford mostra os desafios de se transformar uma cultura.
As trabalhadoras descrevem uma mistura de sexo, exibição, suspeita e ressentimento racial que torna as fábricas --a Fábrica de Montagem de Chicago e a Fábrica de Impressão de Chicago-- especialmente voláteis.
As fábricas são mundos fechados onde os empregados passam referências de emprego para que parentes, colegas de classe e velhos amigos possam trabalhar juntos. Eles compartilham fofocas e boatos, mas também guardam segredos que escondem o mau comportamento. Muitos sentem uma profunda lealdade à Ford e seu sindicato, e se ressentem das mulheres que os acusam, temendo que elas prejudiquem a companhia e ameacem os bons salários e benefícios generosos. Algumas mulheres são suspeitas de pôr em risco um sistema em que o sexo é uma alavanca poderosa.
Combate ao assédio
A Ford se esforçou para combater o assédio nas fábricas, inclusive recentemente reforçou as medidas disciplinares e instalou novas lideranças. Mas com os anos a empresa não agiu de forma suficientemente agressiva ou coerente para extirpar o problema, segundo entrevistas com mais de cem empregados atuais e passados e especialistas da indústria, e uma revisão de documentos jurídicos.
A Ford retardou a demissão dos acusados de assédio, deixando os trabalhadores concluírem que os agressores não seriam punidos. Ela deixou o treinamento contra assédio sexual se diluir e, segundo as mulheres, não conteve a retaliação.
O sindicato local, obrigado a proteger as acusadoras e os acusados, ficou dividido, com uma liderança que incluía supostos predadores. E mesmo os de fora a quem as mulheres pediram ajuda, incluindo advogados e a EEOC, deixaram algumas sentindo-se traídas.
Diretores da Ford dizem ver o assédio como algo episódico, e não sistêmico, com um surto nos anos 1990 e outro no início de 2010 com a chegada de muitos novos empregados. Eles dizem que levam as denúncias a sério e as investigam completamente. Reagindo ao clamor nacional contra o assédio sexual, o executivo-chefe da Ford, Jim Hackett, divulgou um vídeo aos funcionários na semana passada sobre comportamento adequado. "O teste seria se você for para o trabalho, tiver experiências, voltar para casa e contar a sua família a respeito e orgulhar-se do que aconteceu", disse ele.
Não esperamos ou aceitamos qualquer assédio nos locais de trabalho aqui na Ford.
Jim Hackett, executivo-chefe da Ford
Shirley Cain, que chegou à fábrica de impressão há cinco anos e teve de evitar avanços de supervisores e colegas, estava cética. "Essa não é a realidade", disse. "Eles nem vão até o chão da fábrica, por isso não sabem o que acontece."
"Carne fresca!"
Desde o início, as mulheres foram alvos. A primeira advertência muitas vezes vinha durante a orientação enquanto as recém-contratadas eram conduzidas em desfile pela Fábrica de Montagem de Chicago. Shirley Thomas-Moore, uma professora que foi para a Ford para ganhar mais, lembrou da cena em meados dos anos 1980: um homem batia o martelo num corrimão, chamando a atenção da fábrica. "Carne fresca!", gritavam os homens.
Algumas mulheres dizem que sabiam repelir os avanços indesejados --"Eu não jogo", elas dizem--, enquanto outras afirmam que nunca sofreram assédio. Mas James Jones, um representante sindical, disse que o problema não deve ser minimizado, descrevendo a atitude de muitos homens nas fábricas: "Você vai querer comer aquele filé".
A gigantesca fábrica de montagem de Chicago se estende como uma fortaleza baixa sobre uma parte isolada da zona sul de Chicago, perto da fronteira com Indiana. A mais antiga fábrica em operação de uma companhia que um dia revolucionou a manufatura com o Modelo T, hoje produz Fords Explorer e Taurus.
Bilhete premiado
As mulheres entraram para a força de trabalho durante a Segunda Guerra Mundial, quando a fábrica fazia carros blindados M8. Mas foi só nos anos 1970 que elas conseguiram empregos permanentes na linha. Então a Ford tinha construído uma segunda fábrica, a de impressão, para fornecer peças. Hoje as duas empregam cerca de 5.700 pessoas, quase um terço delas mulheres.
Um emprego na Ford era considerado um bilhete premiado. Quando Suzette Wright, uma mãe solteira de 23 anos, foi convidada para trabalhar na montagem em 1993, ficou "louca, maravilhada". Ela trabalhava em empregos em tempo parcial. Em um instante seu salário por hora triplicou, para cerca de US$ 15. Com o passar do tempo, os trabalhadores podiam ganhar US$ 70 mil ou mais por ano --um incentivo para suportar muita coisa.
Como muitas empregadas mulheres que mais tarde processaram a Ford, Wright é afro-americana; os acusados de assédio incluem negros, brancos e latinos. Algumas mulheres se sentiram duplamente vitimadas --chamadas de e denunciadas como imorais enquanto eram chamadas de "cadelas negras" e outras ofensas racistas.
Quando as afrontas continuaram --comentários lascivos, chamados repetidos, homens segurando os órgãos genitais e gemendo cada vez que ela se inclinava--, Wright tentou ignorá-las. Empregadas mais antigas avisavam que relatar o comportamento só trazia mais encrencas. A menor infração, habitualmente desprezada, de repente merecia um aviso por escrito. A própria natureza do trabalho fabril --a pressão para manter a linha de produção em andamento-- dava aos chefes o poder para infligir pequenas humilhações, como negar pausas para ir ao banheiro.
Mas depois que um homem em quem Wright confiava como um mentor fez uma piada sobre lhe pagar US$ 5 por sexo oral, ela pediu ajuda a seu representante sindical. Ele começou o que ela chama de campanha "não dê queixa contra Bill": seu colega poderia perder o emprego, os benefícios, a aposentadoria, disseram-lhe. Os rumores se espalhavam, questionando seu relacionamento. Então um diretor do sindicato fez o insulto definitivo: "Suzette, você é uma mulher bonita, veja isso como um elogio".
A mesma coisa aconteceu com Gwajuana Gray, que foi levada pelo pai à fábrica de montagem em 1991 e ainda trabalha lá. Quando ela disse a um membro do sindicato que um gerente havia encostado o sexo nela, ele disse que devia ficar lisonjeada. "Eu fiquei perdida", disse ela.
A má conduta acumulada cobrou um preço. Algumas mulheres deixaram o emprego, outras ficaram emocionalmente devastadas.
Quando o processo terminou em acordo, em 2000, Wright teve de deixar a Ford. Gray pôde voltar. O assédio diminuiu por um tempo, segundo ela e outras, mas logo retornou. Louis Smith, um veterano na Ford há 23 anos, percebeu alguns danos.
Eu não ia querer que minha filha trabalhasse naquele ambiente. Nós como homens temos de melhorar.
Louis Smith
As queixosas disseram ter enfrentado retaliação de colegas e de chefes. Uma veterana do Exército que acusou um homem de apalpá-la foi fisicamente bloqueada por suas amigas no trabalho, segundo disse. Mais tarde ela encontrou os pneus de seu carro cortados no estacionamento.
Autoridades da Ford dizem que têm uma política rígida contra retaliação, e que os supervisores que exigem retribuição serão disciplinados. Mas "quando você se manifesta", disse gray, "você é como lama na fábrica".
Ao explicar por que o assédio se tornou tão arraigado, ela e outras descreveram o sexo como uma preocupação nas fábricas --ora como diversão, ora como moeda ou como arma. Havia muitos casos e flertes consensuais, concordam as funcionárias. Algumas mulheres usavam o sexo para conquistar favores da hierarquia predominantemente masculina. Os chefes recompensavam aquelas que aceitavam seus avanços distribuindo tarefas mais brandas, ou puniam as que os rejeitavam exigindo que fizessem trabalho mais duro ou perigoso.
Miyoshi Morris cedeu à pressão de um supervisor e ficou muito envergonhada. Ela lutava para encontrar creches para seus filhos que abrissem antes de seu horário na fábrica, às 6h. Segundo ela, um gerente no departamento de pintura lhe disse que estava com problemas por causa dos atrasos. Ele poderia ajudá-la, segundo ela lembrou, se fosse à casa dele em um dia combinado.
Morris concordou e fez sexo com ele.
Fiquei tão perdida, com medo, e percebi que tinha de cuidar dos meus filhos.
Miyoshi Morris
Mais tarde, seu registro de frequência deixou de ser um problema e ela recebeu tarefas melhores. Ela lembra que pensou: "Onde mais posso trabalhar e ganhar tão bem?"
O gerente, Myron Alexander, que foi acusado por diversas mulheres de assédio sexual e foi demitido em 2014, não retornou ligações e mensagens no Facebook pedindo seus comentários.
Sindicato dividido
O primeiro lugar onde as trabalhadoras em dificuldade devem procurar ajuda é seu sindicato --uma família, segundo alguns. Mas quando um membro acusa formalmente outro de assédio sexual a solidariedade racha.
Os representantes sindicais são apanhados entre as súplicas das mulheres para que as defendam e as dos homens para salvar seu emprego. E o próprio sindicato de Chicago hoje está dividido entre os que defendem as mulheres e os acusados de assediá-las.
"O sindicato tem uma tarefa impossível", disse George Galland, que atuou como monitor independente nas duas fábricas de Chicago durante três anos.
Eles têm de proteger seus membros. Os sindicatos têm dificuldade para ajudar a diretoria a controlar o assédio sexual. Eles tendem a pôr obstáculos onde for possível.
George Galland
O atual processo contra a Ford, que envolve cerca de 30 queixosas, acusa diversos representantes sindicais locais de assediar mulheres ou obstruir suas queixas.
Mas as mulheres também destacam alguns representantes com elogios, incluindo um que disse ter passado horas ajudando as mulheres a preencher as queixas. "Como sindicato, devemos ser um só", disse o homem, que não quis ser identificado por medo de perder o emprego. "É frustrante para mim ver que outros não se comportam como cavalheiros."
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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