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As novas formas de roubo em países que usam cada vez menos dinheiro vivo

Raymond Gehman/National Geographic Creative
Imagem: Raymond Gehman/National Geographic Creative

Richard Gray

Da BBC Capital

27/08/2018 11h08

Foi uma noite agitada na Ilha de Lewis. Donald MacLeod saiu para ver como estavam seus pássaros, como fazia toda manhã, mas, ao chegar perto de seu aviário no fundo do quintal, percebeu que alguma coisa estava errada.

"O teto do aviário havia sido cortado e estava voando com o vento", explica. "Minha pequena coruja macho, Scamp, não estava ali. Alguém havia invadido. Ou eles o roubaram ou ele conseguiu escapar enquanto eles tentaram".

MacLeod, um treinador de aves, usava sua coruja para entreter crianças que ficavam hospedadas na pousada que administra com sua esposa em Lewis, na Escócia. "Scamp era um membro da família", diz MacLeod. "Eu estou devastado por ele não estar mais aqui".

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A invasão no aviário de MacLeod é atípica por uma série de questões. Sua pousada fica em uma parte pitoresca e remota do litoral de ventos fortes de Lewis - não é um local onde crimes geralmente acontecem. Ladrões de pássaros caçadores, especialmente corujas, não são comuns.

Mas é um crime que tem aumentado, segundo os membros da comunidade de falcoaria, que treina aves de rapina. Há a crescente suspeita de que eles têm sido alvejados por um motivo surpreendente - como substituição de dinheiro vivo.

Globalmente, estima-se que, até o final da década, terão sido feitas quase 726 bilhões de transações sem dinheiro vivo, um aumento de 10,9% desde 2015. Alguns países, estão se adiantando bastante na mudança para pagamentos eletrônicos.

No Reino Unido, por exemplo, o número de transações em dinheiro em 2017 caiu 15% em relação ao ano anterior --para 13,1 bilhões--, enquanto os pagamentos por cartão aumentaram.

Na China, os pagamentos por celular aumentaram cinco vezes em apenas um trimestre de 2016. No Japão, os pagamentos em cash caíram 8,7% em 2017.

Mas conforme cresce o uso de cartões de crédito sem contato, pagamentos por celular e transações online, a quantidade de dinheiro carregada pelas pessoas ou guardada em estabelecimentos comerciais diminui.

Para criminosos, isso cria um problema. Dinheiro vivo é o melhor amigo dos ladrões --tem valor instantâneo, pode ser carregado facilmente, é relativamente difícil de rastrear e fácil de descartar.

Por isso, com pessoas no mundo inteiro usando cada vez menos dinheiro vivo, ladrões estão precisando encontrar alternativas para ajudá-los nas empreitadas por lucro rápido e ilegal. Veja abaixo algumas dessas alternativas que estão ganhando terreno entre criminosos.

Aves de rapina

Na Suécia, onde 2% de todas as transações são feitas usando dinheiro vivo e um quinto das pessoas sequer chegaram a sacar dinheiro de um caixa eletrônico no ano passado, há os sinais mais fortes de que alguma coisa está mudando entre grupos criminosos do país.

Quatro anos atrás, houve 30 roubos a banco no país, enquanto em 1990 havia cerca de 100 por ano. Em 2017 foram apenas 11. Há declínios parecidos no número de roubos de carro.

Enquanto isso, crimes contra espécies animais protegidas têm aumentado na Suécia, chegando a 156 em 2016 --o maior nível em uma década. Policiais suecos dizem que o roubo de ovos de corujas raras e orquídeas estão entre os crimes mais comuns contra espécies protegidas.

Esses animais são então vendidos no mercado negro e levados escondidos a países como Arábia Saudita, Emirados Árabes e Catar, onde ter uma ave de rapina é vista como símbolo de status.

De acordo com Filippo Bassini, chefe da unidade de polícia para espécies em proteção na Suécia, uma coruja-cinzenta adulta pode custar mais de US$ 112 mil (R$ 434 mil) e são frequentemente vendidas pela internet.

Outros países também tiveram um aumento nos crimes envolvendo espécies em extinção ou protegidas. No Reino Unido, onde apenas 40% de todos os pagamentos são feitos com dinheiro vivo, houve um aumento em crimes envolvendo aves de rapina.

E por mais que uma coruja relativamente comum como Scamp possa render apenas 100 libras no mercado negro (R$ 527), animais raros como um falcão-peregrino fêmea pode custar no mínimo 4 mil libras (R$ 21 mil).

Um falcão-sacre, comumente encontrado na Sibéria, pode render até US$ 75 mil (R$ 291 mil) no mercado ilegal. A procura por essas aves de rapina no Oriente Médio elevou os preços nos últimos anos, tornando-os altamente lucrativos.

Pássaros criados em cativeiro podem ser exportados --muitas vezes em voos especialmente fretados-- se o criador puder comprovar que eles não foram tirados da natureza. Mas o comércio ilegal desses pássaros parece estar aumentando.

Enguias-de-vidro

E não são apenas pássaros, as enguias-de-vidro --as versões menores das criticamente em perigo de extinção Anguilla anguilla -são vendidas por cerca de 1 milhão de euros (R$ 4,76 milhões) a tonelada o mercado negro. Os pequenos peixes são considerados uma especiaria e são comidos grelhados na China.

Somente este ano, estima-se que cem toneladas de enguias-de-vidro foram roubadas da União Europeia e levadas para a China. O comércio de enguias-de-vidro é hoje considerado tão lucrativo quanto o tráfico de cocaína --com apenas uma organização recentemente investigada pela polícia lucrando 250 milhões de libras (R$ 1,3 bilhão) em cinco anos.

"O negócio da vida selvagem mudou completamente nos últimos 10 anos", diz Alan Roberts, que trabalha com as investigações da Unidade Nacional de Crime contra a Vida Selvagem no Reino Unido. "Ladrões que fazem parte de grupos de crime organizados estão procurando por áreas que são lucrativas".

Ligar diretamente o aumento desse tipo de crime à falta de circulação de dinheiro é difícil, mas Bjorn Eriksson, um ex-chefe da Interpol e hoje ativista contra a gradual extinção do dinheiro vivo na Suécia, está convencido de que essa conexão existe.

"Se não podem roubar dinheiro, os criminosos vão roubar outra coisa", diz ele. "Muitos reclamam que o crime vai diminuir porque existirão menos roubos. Pode ser o caso dos bancos, mas os criminosos mudam para outras áreas. Fraudes obviamente serão um grande problema, mas nós podemos esperar outras formas organizadas de roubar substitutos de dinheiro".

Dentes mais brancos

Pássaros e peixes precisam ser alimentados e mantidos em condições controladas, e o transporte desses animais também requer especialização. Por isso, muitos ladrões estão focando em um surpreendente leque de itens de alto valor que usamos todo dia.

De acordo com um relatório recente sobre crime organizado feito pela Federação Nacional de Varejo (NRF, na sigla em inglês), os itens comuns mais roubados de lojas são uma mistura de bens luxuosos e objetos cotidianos.

A lista dos dez mais roubados incluem calças jeans, bolsas de grife, aparelhos de barbear, leite artificial para bebês, sabão em pó e fitas de clareamento de dentes.

"Nós estamos definitivamente vendo uma redução do uso de dinheiro nas lojas", diz Bob Moraca, vice-presidente da prevenção de perdas da NRF. "Em 2015, 40% dos pagamentos eram em dinheiro 42% eram em cartões. Em 2016, esses números mudaram para 23% em dinheiro e 48% em cartões."

"Além disso, estamos vendo uma tendência entre o crime organizado de roubar produtos de alto valor e transformá-los em dinheiro".

Em vez de ir direto para o caixa, os ladrões estão indo para as prateleiras. Celulares caros como o iPhone X da Apple são especialmente atraentes já que podem ser rapidamente exportados para lugares como o México, onde são bastante procurados entre cartéis de droga.

Mas até mesmo uma caixa de aparelhos de barbear ou fitas que deixam os dentes mais brancos podem render até U$$ 40 (R$ 155). E, claro, esses itens são muito mais acessíveis do que o dinheiro guardado no caixa, reduzindo o tempo de um roubo.

"Essas coisas são muito leves e podem ser facilmente carregadas", diz Moraca. "Limpar uma prateleira de uma farmácia pode render centenas de dólares a um ladrão. O que eles fazem é roubar essas coisas em massa e depois montam uma operação sofisticada para convertê-los em dinheiro."

Bolsas de marcas de luxo e ferramentas elétricas já estão em outro extremo --muitas vezes custam centenas a milhares de dólares cada, mas roubar apenas um pode ser muito lucrativo.

"Os ladrões roubam um desses e levam a outra loja como devolução", explica Moraca. "Eles dizem que perderam o recibo ou que foi um presente e recebem um cupom de presente em troca".

Os criminosos então vendem esses cartões de presente em sites que foram criados para permitir que as pessoas se livrem de vouchers que ganharam de aniversário ou Natal.

Mas não importa como os ladrões substituam dinheiro, seja por aparelhos de barbear ou bichos de estimação, o que não vai mudar é como as vítimas se sentem.

"Eu não sei por que ele foi roubado, mas, para nós, Scamp não tinha preço", diz Donald MacLeod. A polícia ainda está investigando o desaparecimento da coruja.