As dicas ao Brasil do iraquiano que ajudou a Noruega a dar volta por cima com petróleo
Há 51 anos, o geólogo iraquiano Farouk Al-Kasim batia à porta do Ministério da Indústria da Noruega, sem hora marcada, em busca de emprego.
Na verdade, esperava apenas conseguir uma lista de empresas petroleiras com atividades no país, para depois oferecer seus serviços a essas companhias.
A visita se tornou entrevista de emprego e, poucos meses depois, Al-Kasim estava trabalhando num ministério que tinha apenas quatro pessoas responsáveis pelo - naquela época - incipiente setor de petróleo norueguês.
Pouco depois, petróleo seria encontrado no Mar do Norte e o iraquiano se tornaria o criador do modelo de exploração desse recurso natural que rendeu para o país o maior fundo soberano do mundo, com cerca de US$ 1 trilhão.
Do final de 1969, quando foi descoberta a primeira reserva, até agora, o país escandinavo se tornou um dos 15 maiores exportadores de petróleo, além de potência na área de tecnologia e inovação.
Embora a Noruega não seja a maior exportadora de petróleo - é a décima-segunda - por não possuir as maiores reservas, especialistas dizem que é o país que melhor soube reverter os lucros da exploração para um projeto de desenvolvimento que beneficiasse a sociedade em geral.
Que decisões garantiram esse resultado bem-sucedido? O exemplo da Noruega pode se aplicar ao Brasil?
A BBC News Brasil conversou com o maior responsável pelo modelo norueguês.
Na entrevista, Farouk Al-Kasim, hoje com 85 anos, explica os fatores que contribuíram para o sucesso da Noruega e dá conselhos para países em desenvolvimento que possuem petróleo em seus territórios.
Para ele, é importante impedir o monopólio das operações por uma única empresa, seja estatal ou privada, para evitar corrupção e abuso de poder.
Além disso, o iraquiano defende que economizar os recursos provenientes das operações de petróleo, com a criação de um fundo, pode ajudar a impedir a 'doença holandesa' e a 'maldição do petróleo'
O dinheiro, segundo ele, deve ser revertido em prol da população e das gerações futuras, com investimentos em infraestrutura, pesquisa e tecnologia. Para isso, na visão de Al-Kasim, a intervenção ou participação estatal - sem monopólio - é necessária.
Como tudo começou para Farouk
O ano que definiu a trajetória de Al-Kasim foi 1968, quando ele, a esposa norueguesa e os três filhos se mudaram para a Noruega.
Naquela época, a mudança soava como grande sacrifício para o iraquiano, que tinha um bom emprego na Companhia de Petróleo do Iraque, em Basra, o que lhe garantia uma vida confortável de classe média alta.
A decisão de se mudar para a Europa veio com o nascimento do terceiro filho do casal que, por causa de uma paralisia cerebral, tinha dificuldade motora.
Na Noruega, o menino teria acesso a melhores tratamentos, e a mudança seria definitiva, já que os cuidados necessários eram de longo prazo.
Deixar o Iraque, contudo, não seria tarefa fácil. Segundo Al-Kasim, era preciso obter autorização do governo para sair do país.
"Eles não queriam que os funcionários-chave da indústria do petróleo deixassem o Iraque em caráter definitivo", explica.
A presença de especialistas iraquianos era essencial para os futuros planos do governo de nacionalizar a indústria do petróleo.
"Precisei de uma junta médica para dizer que era essencial que o meu filho recebesse tratamento médico fora do país", conta Al-Kasim.
Para evitar um "não" do governo iraquiano e viabilizar a ida do restante da família para Noruega, ele teve de dizer que a viagem era temporária, embora soubesse que o adeus ao país de origem era definitivo.
"Eu tive praticamente que organizar uma operação de fuga para o restante da minha família, porque era difícil justificar a saída de todos ao mesmo tempo", contou.
Ultrapassada essa etapa, a maior preocupação de Al-Kasim era arrumar emprego. Ele se formou em geologia do petróleo no Imperial College London, no Reino Unido, onde conheceu a esposa Solfrid, que é norueguesa.
Depois de se formar, retornou ao Iraque com Solfrid, onde se empregou e ascendeu como funcionário no setor de petróleo. Com a mudança para a Noruega, Al-Kasim teve que pedir demissão da empresa onde trabalhava.
Na Noruega, a vida seria diferente. Desempregado, ele e a família morariam com a família da esposa numa pequena cidade norueguesa.
'Pit stop' no Ministério da Indústria
Al-Kasim desembarcou em Oslo em maio de 1968. Na capital norueguesa, teria oito horas de espera até tomar o trem para o interior.
"Eu comecei refletir sobre o que poderia fazer durante esse período de tempo e decidi pedir uma lista das empresas de petróleo que operam na Noruega. Optei por ir até o Ministério da Indústria, já que não havia, na época, um ministério do Petróleo ou de Minas e Energia", disse.
Ao chegar ao ministério e solicitar uma reunião, foi informado para retornar durante a tarde. "Quando voltei, vi que eles estavam muito interessados em saber da minha experiência. A reunião virou uma entrevista de emprego."
Na época, empresas internacionais estavam tentando achar petróleo na Noruega, mas em anos de pesquisas, nada significativo havia aparecido.
Prova das baixas expectativas do governo norueguês era o fato de que só havia três funcionários responsáveis pelo setor - todos relativamente jovens e com pouca experiência na área.
Precisavam de um especialista para analisar os resultados das explorações das companhias de petróleo.
"Os funcionários do ministério disseram que entrariam em contato caso tivessem algum emprego para me oferecer. Alguns meses depois, eles me telefonaram", conta Al-Kasim, que acabou sendo contratado como consultor no Ministério da Indústria.
A missão dele seria analisar os achados das empresas e dar um parecer sobre as possibilidades reais de exploração lucrativa de petróleo no país.
A descoberta de petróleo
Al-Kasim conta que, em 1965, o governo norueguês concedeu 78 licenças a empresas privadas para explorar potenciais reservas, mas após três anos de buscas, os resultados eram desanimadores.
Até que, no final de 1969, a Philips Petroleum informou ter achado petróleo no campo de Ekofisk. A descoberta ocorreu pouco depois de a empresa comunicar ao governo norueguês que pretendia interromper as operações.
Coube a Al-Kasim analisar os achados da Philips e a das buscas feitas pelas outras empresas. "No meu relatório, eu fui enfático em dizer que aquelas descobertas comprovavam a existência de petróleo e gás no Mar do Norte", disse à BBC News Brasil.
"Eu tinha certeza de que a Noruega tinha potencial de ser uma grande produtora."
Mas o governo norueguês optou por agir com cautela, diferentemente de muitos países que se jogariam de cabeça em busca dessa "riqueza".
"Eles queriam ter certeza de que seria possível explorar petróleo com competitividade. E também estavam preocupados com o impacto ambiental, com os pássaros e animais, e com o efeito para as populações locais e a atividade pesqueira", relata Al-Kasim.
Hoje, ele reconhece que essa cautela foi um dos fatores que salvaram a Noruega do que ele chama de "maldição do petróleo".
Bênção ou maldição?
Petróleo é, naturalmente, uma potencial fonte de riqueza. Mas essa riqueza nem sempre se converte em desenvolvimento e, às vezes, pode condenar um país à corrupção e a depender de um único setor produtivo.
Se decisões erradas ou precipitadas são tomadas, a exploração de petróleo pode acabar "engolindo" as demais indústrias. Isso porque, com capacidade de pagar maiores salários, a indústria de petróleo e gás acaba absorvendo boa parte da mão-de-obra especializada de outros setores.
E o grande fluxo de dinheiro para as regiões de exploração eleva os preços, encarecendo o custo de vida para a população local que não trabalha direta ou indiretamente com esse setor.
Empresas não relacionadas à indústria do petróleo quebram e o país passa a depender cada vez mais exclusivamente da produção e exportação de combustível, num fenômeno conhecido como "doença holandesa" ou "maldição do petróleo".
"Se você deixa o setor de petróleo crescer rápido demais, sem regulação e sem preparar o país, ele pode sugar os investimentos de outras partes da economia", explicou à BBC News Brasil o consultor em economia do petróleo Erik Jarlsby, da Eureka Energy Partners.
É o caso, por exemplo, da Venezuela, que tem sua economia quase totalmente dependente do petróleo.
Outros riscos ligados à exploração desse recurso incluem a concentração excessiva de poder nas mãos de uma - ou algumas - empresas, estatais ou privadas, que acabam tendo influência decisiva nos rumos do país.
A Noruega escapou da "maldição", soube criar equilíbrio entre a participação de empresas privadas e do Estado na exploração e, com os lucros do petróleo, conseguiu formar um fundo voltado para desenvolver infraestrutura, pagar aposentadoria e garantir o bem-estar das gerações norueguesas futuras.
Como conseguiu isso?
Cautela e planejamento
Al-Kasim diz que a primeira decisão acertada da Noruega foi agir com cautela.
Em vez de iniciar de imediato novas concessões e arriscar entregar recursos e o poder de decisão comercial a empresas internacionais, o governo decidiu que novas licenças só seriam concedidas depois que fosse criado um marco regulatório e um modelo de exploração.
Coube a Farouk elaborar esse modelo que, depois, foi votado no Parlamento. "A Noruega estava determinada a ter uma visão, uma política, instituições, uma estatal e uma legislação que permitissem um trabalho conjunto com as empresas privadas antes de iniciar a exploração de petróleo", relata.
"Em 1971, foram aprovadas diretrizes que criavam um ambiente para que empresa estatal, empresas nacionais privadas e empresas internacionais pudessem atuar em conjunto", diz.
Para que o governo pudesse ter peso nas decisões comerciais referentes ao petróleo, foi criada a estatal Statoil.
Mas, diferentemente do que ocorreu no Brasil, essa empresa não recebeu direitos monopolísticos sobre extração e refino, embora tenha obtido privilégios no início da operação para que pudesse competir com as empresas já estabelecidas.
No Brasil, por 44 anos, do governo Getúlio Vargas até 1997, com a Lei do Petróleo, a Petrobras deteve exclusividade em diversas operações do setor. Até hoje, a empresa controla grande parte das operações de extração e refino de petróleo.
No caso da Statoil, Al-Kasim diz que, no início, houve uma proteção para garantir que a estatal tivesse de 10% a 25% de participação em novas licenças. O objetivo era garantir que a empresa tivesse competitividade.
Mas, segundo ele, a proteção foi sendo retirada conforme a Statoil adquiria condições para competir em pé de igualdade com as empresas internacionais.
A especialista em gestão de petróleo Tina Hunter, professora de legislação em energia da Universidade de Aberdeen, no Reino Unido, destaca que o maior enfoque do governo norueguês ao conceder "privilégios" à Statoil era garantir que a estatal obtivesse conhecimento e desenvolvesse tecnologia.
"Uma das condições para licença de exploração a empresas privadas era, por exemplo, treinar funcionários da Statoil", disse à BBC News Brasil.
Participação forte do Estado, mas sem monopólio
A segunda decisão acertada do governo norueguês, segundo Al-Kasim, foi garantir a inserção do Estado na regulação e exploração de petróleo, por meio da Statoil e de uma agência reguladora, mas sem assumir o monopólio sobre as operações.
A partir do modelo de gestão proposto por Al-Kasim, os parlamentares decidiram que a participação norueguesa total nas operações de petróleo não deveria ser menor que 50%.
Mas essa participação não precisava ser direta do Estado - a soma considerava também as atividades das empresas privadas nacionais. Na década de 1970, havia duas companhias norueguesas no setor.
"Nós não queríamos que a Statoil se tornasse todo-poderosa ou um Estado dentro do Estado. Não queríamos que ela tivesse poder de decisão sobre a concessão de licenças para outras empresas", destaca Al-Kasim.
Perguntado se, na visão dele, impedir o monopólio no setor é necessário para evitar casos de corrupção como o investigado na Petrobras pela Operação Lava Jato, ele foi categórico:
"É fácil responder a essa pergunta. A história mostra que é muito difícil evitar a corrupção quando há a possibilidade de uma empresa privada ou estatal dominar todas as outras."
Para garantir o cumprimento da lei e dos objetivos do novo modelo, foi criada uma agência reguladora, a Direção de Petróleo Norueguês, cujo principal objetivo era garantir competitividade e equilíbrio na atuação da Statoil, das outras empresas nacionais e das companhias estrangeiras.
Fundo trilionário
Apesar da cautela na liberação de novas concessões, quando as operações começaram, no início da década de 1970, nos poços já licenciados, rapidamente recursos começaram a inundar a economia norueguesa, colocando o país em risco de cair na temida "doença holandesa".
Empresas de outros setores passaram a sofrer com o grande enfoque dado à indústria de petróleo e o governo resolveu agir para conter os estragos.
"Em 1973, a Noruega começou a produção e houve significativo retorno financeiro e nós tivemos várias dificuldades para manter outras indústrias vivas", relata Al-Kasim.
O governo, então, resolveu, em 1974, limitar novas concessões e controlar o ritmo das operações voltadas à descoberta de reservas. "Foi uma decisão crucial para evitar a maldição do petróleo", diz.
Inicialmente, os recursos do petróleo foram investidos em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia para permitir a exploração em águas profundas.
Mas, com o tempo, os lucros foram aumentando e o governo decidiu que parte do dinheiro deveria ser economizada para beneficiar, também, as futuras gerações que não mais poderão contar com a indústria do petróleo.
Al-Kasim menciona como terceiro fator de sucesso do modelo norueguês a criação, na década de 1990, de um fundo soberano para evitar que o dinheiro das operações entrasse de imediato na economia do país.
Os recursos do fundo são aplicados em ações de empresas estrangeiras, justamente para impedir a circulação excessiva de dinheiro na Noruega. E o governo só pode usar, atualmente, até 3% do total por ano. Antes o percentual era de 4%, mas foi reduzido pelo Parlamento em 2017.
O objetivo é impedir que o dinheiro seja gasto de uma só vez em tempos difíceis, como é a tentação de governos no afã de recuperar a popularidade em épocas de crise.
Além disso, explica Al-Kasim, o fundo tem uma função "intergeracional", ou seja, deve beneficiar as futuras gerações norueguesas. A expectativa é que as reservas no país se esgotem em até 50 anos.
"Conforme as atividades de petróleo se tornam menos profícuas e menores em volume, a economia precisa estar pronta para esse desafio", justifica Al-Kasim.
Esse modelo de gestão dos recursos do petróleo rendeu à Noruega o título de detentora do fundo soberano mais robusto do mundo - atualmente com mais de US$ 1 trilhão.
Esse modelo pode ser replicado no Brasil?
A especialista em gestão de petróleo Tina Hunter, da Universidade de Aberdeen, diz que o modelo norueguês pode e deve servir de inspiração para o Brasil.
Para ela, o Estado deve intervir na gestão do petróleo como regulador e, em alguns casos, por meio de uma estatal, mas sem exercer o monopólio.
Hunter argumenta que o grande erro do modelo brasileiro foi concentrar poderes demais nas mãos da Petrobras.
De 1953, quando foi criada, a 1997, quando a Lei do Petróleo permitiu a entrada de empresas estrangeiras no setor, a Petrobras detinha o monopólio da exploração e do refino.
A partir de 1997, ela pôde decidir com quais campos ficar e quais liberar para exploração de companhias privadas.
Acabou ficando com todas as reservas lucrativas e abdicou de 62 campos pequenos, diz a consultora de energia da Fundação Getúlio Vargas Magda Chambriard, ex-diretora-geral da Agência Nacional de Petróleo (ANP).
Nos campos ainda não explorados, a estatal pôde manter o controle se comprovasse ter tecnologia para explorar. Se não tivesse, poderia tanto liberar para concessões a empresas privadas quanto formar parcerias para exploração conjunta.
No caso do pré-sal, a lei de partilha prevê que o Ministério de Minas e Energia (por meio do Conselho Nacional de Política Energética) decida se realiza licitações para exploração ou se entrega determinadas áreas diretamente à Petrobras, se considerar que é de interesse nacional manter o controle total dessas reservas.
No caso de optar pela licitação, o conselho oferece primeiramente à Petrobras a opção de ser operadora dos blocos a serem contratados. Se a estatal tiver interesse, ela deve informar em quais áreas quer atuar e terá garantida participação mínima de 30% no consórcio que vencer a licitação para explorar as reservas.
Ou seja, a Petrobras ainda detém ampla preferência na exploração e controle das operações de petróleo no Brasil.
"No momento em que você começa a dar poderes demais para uma empresa, tudo desmorona. É quando temos corrupção e escândalo. Quando há poder demais, há corrupção", diz Hunter.
"A estatal não deve ter poder de decisão sobre o modelo de concessão. Precisa ser tratada como as empresas privadas, sem poderes especiais", defende a professora britânica.
'Poder em excesso gera corrupção'
Farouk Al-Kasim concorda com a visão de que excesso de poder nas mãos de uma estatal ou empresa privada abre brecha para a corrupção.
Ele diz que quando a Statoil passou a deter uma fatia muito ampla do mercado, em 1983, o governo norueguês, então, agiu para reduzir o poder de decisão da companhia e acabou por privatizar parte da empresa, posteriormente.
Atualmente, 33% das ações da companhia, hoje chamada Equinor, são privadas e o restante é do Estado.
"A natureza humana é muito simples. Quando você tem poder, os outros temem te desafiar", diz Al-Kasim ao comentar sobre as denúncias de que construtoras que detinham contratos com a Petrobras pagavam propina a diretores da estatal e a partidos políticos.
"Se o Estado não quer que a sua estatal tenha uma posição monopolística, precisa criar regras para as demais empresas serem ouvidas e criar pesos e contrapesos. Sem isso, o forte vai prevalecer. E o forte pode não querer servir aos interesses da nação."
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