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Como a turbulência eleitoral afetou a vida dos argentinos e 'aproximou' rivais

Cristina Kirchner conversa com o então ministro Alberto Fernández durante reunião na Casa Rosada, em Buenos Aires, na Argentina, em 27 de novembro de 2010 - Cézaro de Luca/Efe
Cristina Kirchner conversa com o então ministro Alberto Fernández durante reunião na Casa Rosada, em Buenos Aires, na Argentina, em 27 de novembro de 2010 Imagem: Cézaro de Luca/Efe

Marcia Carmo

De Buenos Aires para a BBC News Brasil

17/08/2019 15h17Atualizada em 03/09/2019 12h58

A cerca de 70 dias do primeiro turno da eleição presidencial na Argentina, marcado para o dia 27 de outubro, a população enfrentou uma das semanas mais turbulentas desde que Mauricio Macri assumiu a Presidência da República, em dezembro de 2015.

Numa espécie de primeiro turno antecipado, como avaliaram analistas e políticos de diferentes linhas ideológicas, os eleitores argentinos deram ampla vitória à oposição nas primárias partidárias, realizadas no domingo (11). A chapa formada por Alberto Fernández e Cristina Kirchner, ex-presidente agora candidata a vice, atingiu um patamar que garantiria a vitória no primeiro turno.

O impacto eleitoral nos mercados e no cotidiano dos argentinos foi imediato no dia seguinte à derrota do presidente Macri, que terá bastante dificuldade para reverter o quadro e conseguir se reeleger.

O dólar disparou (passou dos 46 pesos para acima de 60 pesos), e as ações desabaram numa queda histórica de 37,9% da Bolsa de Buenos Aires.

A moeda americana tem efeito imediato sobre os preços locais e, por extensão, sobre a inflação argentina - antes da turbulência, a taxa prevista era de 40% neste ano.

Operações cotidianas, como a venda de seguros de viagem, com preços baseados em dólar, foram suspensas na segunda-feira (12), e retomada com novos valores nos dias seguintes. O mesmo ocorreu, segundo a imprensa local, com as concessionárias de automóveis.

Na quinta-feira (15), uma conversa numa sapataria no shopping Alto Palermo, entre um vendedor e uma compradora argentina, ilustrava o resultado da desvalorização e, como efeito, a nova onda de remarcações de preços.

"Vim aqui na semana passada e a bota custava 3.000 pesos (cerca de R$ 280, então) e agora está a 5.000 pesos?", disse.

O vendedor lhe respondeu: "Mas o dólar subiu".

O sentimento de surpresa e decepção podia ser testemunhado em outros segmentos da economia. "Votei em Macri porque queria mudanças. Estava cansada de Cristina e sua turma. Mas hoje vivo muito pior do que antes", disse a depiladora que se identificou como Nelly.

"Nossa empresa enfrentava obstáculos durante o kirchnerismo (2003-2015) porque tínhamos que lidar com as pressões dos sindicatos, mas as vendas estavam bem. Mas com Macri não esperávamos esta recessão tão forte, essa inflação alta e a falta de perspectivas. Estamos encarando os piores meses das nossas lojas", afirmou à BBC News Brasil o dono de uma das principais redes de varejo da Argentina, sob a condição do anonimato.

Peso econômico na eleição

Pouco depois de assumir a Casa Rosada, em 2015, Macri descongelou as tarifas dos serviços como de transportes públicos, luz e gás. As duas últimas passaram a ser tão altas, principalmente comparadas aos padrões anteriores, que começaram a ser cobradas em duas parcelas.

Em muitos relatos de eleitores, independentemente do setor social, as queixas parecem similares e, segundo economistas, medidas de Macri como o tarifaço acabaram estrangulando o poder de compra e o consumo dos argentinos.

"Se a Argentina aumentou tarifas é porque tínhamos ficado sem nada. Sem petróleo, sem gás, sem energia elétrica (durante o kirchnerismo). E hoje temos tudo isso e estamos exportando novamente energia", disse a ministra da Segurança, Patricia Bullrich, outra das porta-vozes do governo na semana de crise.

Durante o kirchnerismo, esses preços administrados chegaram a ser tão baratos quanto um refrigerante. O sistema econômico daquela gestão defendia manter as tarifas artificialmente baixas a fim de conter a inflação, incentivar o consumo e manter um certo patamar de atividade econômica em funcionamento, ao segurar, por exemplo, o preço de combustíveis.

Com a derrota nas primárias, Macri ficou no "labirinto" de continuar fazendo campanha e governar, mas, principalmente, mostrar que tem "governabilidade" até a data de passar a faixa presidencial (ou não) no dia 10 de dezembro.

Em reação, Macri disse ter "entendido o recado das urnas" e fez uma série de anúncios durante esta semana, como o aumento do salário mínimo e dos planos sociais, além de medidas impositivas, para tentar conter a insatisfação do seu eleitorado que, como ele disse, está fazendo esforços além dos que imaginou diante da crise socioeconômica.

Para combater a volatilidade financeira e a incerteza política, o presidente ligou para o rival Fernández, na quarta-feira (14), e o mercado financeiro sugeriu uma trégua, no dia seguinte, com leve baixa do dólar.

"Mas é uma trégua muito frágil. Os dois, Macri e Fernández, mostraram vontade de diálogo. Mas se não assinarem nenhum acordo a incerteza vai continuar. É preciso evitar o que o país já viveu quando Alfonsín renunciou seis meses antes do fim do mandato e a falta de um acordo sólido com Menem acabou alongando a crise e a hiperinflação", disse o analista político Rosendo Fraga, do Centro de Estudos Nova Maioria, de Buenos Aires.

A eleição está resolvida?

O resultado das primárias de domingo (11), quando Fernández recebeu 47% dos votos (suficientes para atingir o patamar de 45% necessário para vencer a eleição presidencial em um primeiro turno) e Macri 32%, antecipou debates sobre a transição do poder para oposicionaistas e até mesmo se Macri terminaria o mandato.

O próprio Macri, à sua maneira, rebateu, na quinta-feira, o que os analistas chamaram de "risco de vazio de poder". Numa reunião com centenas de pessoas de seu governo, num auditório em Buenos Aires, Macri disse que "por mais que o mundo se comporte como se já não estivéssemos mais, e como se já estão os que vêm, e nos castigam, nós estamos aqui".

Macri não é ligado ao peronismo, e a Argentina é um país com histórico de presidentes não peronistas que não concluem seus mandatos, como nos casos dos ex-presidentes Raúl Alfonsín (1983-1989) e Fernando de la Rúa (1999-2001).

"No passado, derrubaram governos. Isso não vai acontecer. E não estamos em transição (do governo para a oposição). As primárias não definiram nada. Não há transição sem eleição presidencial. Quem está na Presidência é o presidente Macri", disse a ministra Bullrich.

Na aproximação entre Alberto Fernández e Mauricio Macri, o candidato oposicionista afirmou a rádios locais ter pedido ao atual presidente que "proteja" as reservas do Banco Central para evitar problemas futuros para a Argentina.

"Nós e Macri representamos coisas diferentes. Por isso, é difícil que apoiemos suas medidas. Mas foi uma conversa boa para transmitir tranquilidade a todos. Todos queremos que a economia seja estabilizada", disse opositor. Pouco antes, ele responsabilizou Macri pela crise cambial e financeira desta semana.

"Foi Macri que disse que se ganhássemos a Argentina viraria a Venezuela. Foi ele que gerou esse temor. Não seremos a Venezuela." Na conversa entre os dois, segundo a imprensa local, Macri justificou a comparação dizendo: "Mas até outro dia Cristina Kirchner apoiava Nicolás Maduro".

Fernández disse ainda que, caso eleito, não pretende dar um calote na dívida contraída pelo governo Macri com o Fundo Monetário Internacional (FMI). O governo Macri assinou, no ano passado, uma dívida de cerca de US$ 57 bilhões com o organismo.

"Peço ao presidente que renegocie o acordo com o Fundo", disse Fernández. Economistas de sua equipe já tinham dito que os prazos de pagamento da bolada, concentrados no próximo governo, são difíceis de cumprir.

Farpas com Bolsonaro

A semana foi marcada ainda por declarações de Fernández sobre o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PSL) durante entrevista a um programa local.

O candidato opositor, que é aliado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a quem visitou na prisão em Curitiba, disse que Bolsonaro é "um racista, um misógino e violento que é a favor da tortura."

Horas depois, Bolsonaro afirmou que "bandidos de esquerda começaram a voltar ao poder" na Argentina. Perguntado sobre as novas declarações do presidente brasileiro, Fernández afirmou: "Que ele fale o que quiser".

Bolsonaro também ameaçou abandonar o Mercosul caso a Argentina se oponha à abertura comercial do bloco econômico.

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Errata: este conteúdo foi atualizado
No 22º parágrafo, informação sobre o mandato de Raúl Alfonsín estava incorreta. A informação foi corrigida.