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Por que a soja brasileira se tornou ponto sensível na guerra comercial de Trump contra a China

Como a soja americana ficou mais cara, com aumento de tarifas de importação, a China passou a importar mais grãos brasileiros. Mas a substituição não agradou o presidente americano - Jim Watson/AFP
Como a soja americana ficou mais cara, com aumento de tarifas de importação, a China passou a importar mais grãos brasileiros. Mas a substituição não agradou o presidente americano Imagem: Jim Watson/AFP

Nathalia Passarinho

Da BBC News Brasil em Londres

19/08/2019 07h58

Embora não tenha tomado partido e nem seja alvo da guerra comercial entre China e Estados Unidos, o Brasil acabou ganhando um papel coadjuvante nessa disputa.

Um dos principais produtos agrícolas brasileiros, a soja, se tornou um novo ponto de tensão entre o presidente americano, Donald Trump, e o governo chinês.

Em retaliação à alta de tarifas sobre bens industrializados da China, o governo de Xi Jinping passou a tributar em 25% diversos produtos agrícolas americanos, entre eles a soja.

Quem acabou ganhando com isso, pelo menos no curto prazo, foi a soja brasileira. Como o grão americano ficou mais caro, a China substituiu as compras dos EUA pelo produto do Brasil. Com isso, nosso país se tornou o maior exportador de soja para China - e do mundo - ultrapassando os EUA.

Segundo a imprensa americana, Donald Trump não encarou com naturalidade essa troca. O assunto foi amplamente noticiado na semana passada pelos principais veículos americanos.

Segundo reportagem da emissora CNN, o presidente dos EUA estaria "insatisfeito" com a China por causa da substituição da importação de soja americana pela brasileira.

Uma reportagem da revista Forbes diz que a compra de soja do Brasil é uma decisão política, não só comercial, da China, com o objetivo de punir os EUA e reduzir a importância do país como fornecedor de commodities.

Já o site de notícias Bloomberg, em reportagem de destaque no dia 15 de agosto, afirmou que a China acabara de fazer uma grande encomenda de soja brasileira, em substituição do produto americano.

"A guerra comercial teve início em março de 2018 e, em 2019, houve um aprofundamento da disputa, com aumento de tarifas sobre os mesmos produtos chineses e americanos", disse à BBC News Brasil o gerente de Negociações Internacionais da CNI, Fabrizio Panzini.

"Como o Brasil naturalmente tem uma competitividade na soja e é um dos poucos players internacionais, junto com os Estados Unidos e Argentina, é natural que uma queda de exportação dos EUA leve a um aumento da exportação do Brasil."

Exportação recorde

Em 2018, o primeiro ano da guerra comercial, as exportações brasileiras para a China cresceram 35% na comparação com 2017, gerando uma balança comercial positiva para o Brasil em US$ 30 bilhões.

A soja foi a maior beneficiada, com uma exportação adicional de US$ 7 bilhões para a China, na comparação com 2017. Outros setores que cresceram foram os de carne bovina (US$ 557 milhões a mais), algodão (US$ 358 milhões) e carne suína (US$ 202 milhões).

Neste primeiro semestre, a exportação de soja caiu 20% na comparação com o mesmo período de 2018, conforme dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Mas isso ocorreu porque a demanda da China sofreu uma redução, explicou à BBC News Brasil o presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho (Aprosoja), Bartolomeu Braz.

"A gripe suína da África chegou à China neste ano atingindo a produção de porcos. Centenas de animais foram abatidos e eles consomem farelo de soja. Então, essa situação contribuiu para reduzir a demanda por soja no país, já que esse grão compõe a ração dos suínos", disse.

Apesar de ter vendido menos que em 2018, o Brasil continua a ser o principal parceiro comercial da China na venda de soja. E o baque da perda de protagonismo não está sendo fácil de absorver nos Estados Unidos.

O Departamento de Agricultura dos EUA estima que o setor de exportação de grãos vai precisar de pelo menos cinco anos para voltar a obter resultados como os de 2017.

Para reduzir o estrago e impedir que a situação reduza a sua base eleitoral (parte dos eleitores de Trump é composta por agricultores), o presidente americano aprovou um pacote de auxílio de US$ 28 bilhões.

O acordo que prejudicaria produção brasileira

O avanço da soja brasileira e o consequente prejuízo que isso traz para os produtores é apontado como fator adicional de discórdia entre Trump e Xi Jinping.

Uma das condições de Trump para negociar a retirada de tarifas sobre produtos chineses era a China passar a comprar mais produtos agrícolas americanos.

O acordo que ele tentava empurrar para Xi Jinping previa um aumento das importações de grãos e alimentos dos EUA a patamares maiores que os anteriores à guerra comercial - o que prejudicaria outros exportadores de commodities, como o Brasil.

"A proposta de acordo previa que produtos agrícolas dos EUA fossem mais comprados e, nesse cenário, o Brasil poderia sofrer condições mais desfavoráveis que os produtos americanos. Por isso, o grau de incerteza é muito grande", diz o diretor de negócios internacionais da CNI, Fabrizio Panzini.

Mas, até agora, o presidente americano não conseguiu arrancar esse compromisso e tem respondido com aumentos adicionais de tarifas.

Política protecionista de Nixon da década de 70 fortaleceu a soja brasileira

Apesar da insatisfação do governo americano com os ganhos do setor de soja brasileiro, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que a própria política protecionista de Trump se voltou contra os agricultores dos EUA.

E mais: de acordo com o professor Andrew Milovan, da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, foi uma política protecionista de outro presidente republicano dos EUA, Richard Nixon, que inicialmente catapultou o setor de exportação de soja do Brasil.

Ele conta que, na década de 1970, havia grande preocupação com a alta da inflação nos EUA, causada por diferentes fatores.

O governo americano estava se endividando com a guerra do Vietnã e eventos climáticos fora do comum provocaram escassez de grãos na Rússia e de proteínas na América do Sul e Ásia. Isso fez com que os preços dos produtos agrícolas subissem muito.

Para tentar conter a alta dos preços, Nixon temporariamente congelou preços de alimentos e restringiu exportações de grãos. "Grande parte da soja consumida pelo Japão era produzida nos EUA. A medida de Nixon durou só três meses, mas os japoneses chegaram à conclusão de que não poderiam confiar nos EUA como principal exportador desse produto", contou Milovan à BBC News Brasil.

O governo japonês passou, então, a procurar novos parceiros e viu no Brasil um potencial fornecedor. "Os japoneses investiram em infraestrutura no Brasil, emprestaram dinheiro por meio de um fundo de desenvolvimento, e compartilharam expertise. Isso foi essencial para sofisticar o setor exportador de soja brasileiro", conta o professor americano.

Ou seja, um dos efeitos colaterais da política de Nixon foi criar para os Estados Unidos um grande rival na produção de soja. E agora, Trump parece estar cometendo o mesmo erro, diz o professor americano.

Antes da guerra comercial, o Brasil era o segundo maior exportador de soja do mundo. Agora, é o primeiro. "E no ano que vem vamos nos tornar o maior produtor de soja, além de maior exportador", destaca o presidente da Aprosoja, Bartolomeu Braz.

Mas ganhos com a guerra comercial são instáveis

Mas é preciso ter cautela na comemoração desses resultados, advertem os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.

Fabrizio Panzini, da CNI, destaca que, embora no curto prazo a guerra comercial entre China e EUA beneficie alguns setores produtivos brasileiros, a longo prazo essa disputa tem potencial para prejudicar a economia do Brasil e do mundo como um todo.

"No ano passado, o comércio mundial cresceu abaixo do previsto e neste ano a guerra comercial também está afetando o ritmo. Então há ganhos pontuais, mas há um risco de diminuição do ritmo de comércio mundial que pode afetar a previsão de crescimento da economia brasileira", diz.

Além disso, a imprevisibilidade dos próximos capítulos faz com que qualquer investimento seja arriscado. Se a guerra comercial terminar com um acordo que favoreça produtos agrícolas americanos, o setor exportador de commodities brasileiro pode ser negativamente afetado.

"É um risco muito grande apostar que esse mercado dure muito tempo. Pode ser que ele dure, mas pode ser que amanhã EUA e China estendam as mãos, façam um acordo e a gente passe a ter condições ainda mais desfavoráveis do que tinha antes da guerra comercial", destaca o gerente de negócios internacionais da CNI.

O presidente da Aprosoja concorda. Ele ainda destaca que, como a produção de soja nos EUA perdeu um comprador importante, haverá um grande excedente de produção lá e isso pode puxar para baixo os preços dos grãos no mercado internacional.

"A guerra comercial motivou o produtor brasileiro a plantar mais. Mas a soja que não foi vendida pelos EUA ficou represada e a nossa referência é a Bolsa de Chicago. Com a sobra de soja, os estoques estão altos e, com isso, o preço cai", diz Bartolomeu Braz.

"O que a gente percebe é que, no fim das contas, essa guerra comercial traz muitos riscos"