Por que secretário das privatizações de Bolsonaro deixou governo sem vender estatais
"Calculamos que temos cerca de R$ 1 trilhão em ativos (da União) a ser privatizados, incluindo as ações do Tesouro na Petrobras", disse Paulo Guedes, em agosto de 2018, ainda na campanha presidencial, antes de se tornar ministro da Economia no governo de Jair Bolsonaro.
O valor expressivo que pretendia alcançar com a venda de estatais brasileiras foi repetido várias vezes pelo economista e até cresceu depois que sua equipe foi montada, com a escolha do empresário Salim Mattar para comandar a Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do ministério.
"O Salim está todo animado porque ontem ele fez contas e já deu R$ 1,250 trilhão, só de participação nas estatais", ressaltou Guedes em março de 2019.
Após quase 18 meses com a missão de vender o máximo possível de ativos da União, Mattar anunciou sua saída do governo na terça-feira (11) sem ter chegado perto da ambiciosa meta trilionária.
O pedido de demissão decorreu justamente da dificuldade em concretizar os planos de privatização, que Mattar atribuiu às resistências dentro do Congresso Nacional devido à pressão de diversos grupos.
"Empregados públicos, sindicatos, fornecedores, comunidades, políticos locais, partidos de esquerda e lideranças políticas têm sido uma barreira natural para a privatização", listou em um artigo que explica sua saída.
A resistência ao plano de "vender tudo" de Guedes e Mattar, porém, vinha também de dentro do próprio governo. Bolsonaro, ainda na campanha eleitoral, sempre deixou claro que não tinha planos de privatizar estatais que considera estratégicas, como Petrobras, Banco do Brasil e Caixa.
Passo lento
"Sem essas, o Salim pode se matar pra vender tudo que não vai chegar à sombra do um trilhão que o Paulo Guedes queria. Se privatizar as outras e não essas, não adianta", já alertava no ano passado o economista e ex-diretor do Banco Central Alexandre Schwartsman, em entrevista à BBC News Brasil sobre os planos de privatização do governo.
Segundo um balanço divulgado pelo próprio Mattar no início de agosto, operações de "desestatização e desinvestimento" no governo Bolsonaro geraram, por enquanto, R$ 134,9 bilhões.
Esse valor não inclui a privatização completa de qualquer estatal. É, na verdade, a soma das vendas de partes da Petrobras e da Eletrobras e da comercialização de ativos da União ou de Caixa, Banco do Brasil e BNDES — em geral, ações que o Tesouro ou esses bancos públicos detinham em empresas diversas (papéis de Petrobras, Banco do Brasil, IRB, Fibria, Vale, Marfrig, Cosan, etc).
Ainda segundo esse balanço, o governo Bolsonaro se desfez de 84 ativos da União, considerando a venda de empresas coligadas e subsidiárias de estatais, ou da simples participação das estatais em outras companhias. Isso reduziu o total de empresas com alguma participação estatal federal de 698 para 614.
Entre essas operações, se destaca, por exemplo, a venda de 90% de participação da Petrobras na TAG (Transportadora Associada de Gás) por R$ 33,5 bilhões para o grupo formado pela Engie (multinacional francesa) e pelo fundo canadense Caisse de Dépôt et Placement du Québec (CDPQ).
Embora uma das justificativas do governo para defender privatizações seja levantar recursos para melhorar as contas públicas, operações desse tipo não geram receita direta para o Tesouro Nacional, já que o ganho com a venda de subsidiárias vai para o caixa da Petrobras. A receita para a União fica por conta de arrecadação de tributo sobre a operação.
Outro argumento central da defesa das privatizações é a visão de que estatais são menos eficientes que empresas privadas e acabam gerando prejuízos aos cofres públicos. Já os defensores das empresas públicas acreditam que o Estado deve estar presente em setores econômicos estratégicos.
Sem conseguir vender uma estatal sequer, Mattar viu uma nova empresa pública ser aprovada no Congresso, com apoio do Ministério da Defesa, apesar de sua oposição. A NAV Brasil Serviços de Navegação Aérea foi criada em setembro de 2019 a partir da cisão de parte da Infraero.
A última estatal antes dela havia sido criada em 2013, no governo Dilma Rousseff: a ABGF (Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias).
Eletrobras, Correios e Casa da Moeda
Das 614 empresas com alguma participação pública federal, 46 são estatais de controle direto da União cuja a venda só é possível com aval do Congresso.
Com o veto de Bolsonaro à venda de Petrobras, Caixa e Banco do Brasil, a equipe econômica tenta privatizar outras estatais importantes como Eletrobras, Correios e Casa da Moeda, mas tem enfrentado resistência dos parlamentares.
A Casa da Moeda já tinha até sido retirada da lista de possíveis privatizações por Salim Mattar, depois que o Congresso deixou a Medida Provisória 902 expirar em abril. A MP editada por Bolsonaro em novembro acabava com o monopólio da Casa da Moeda para impressão de papel moeda, condição necessária para que a empresa pudesse ser privatizada.
Em novembro, o governo enviou ao Congresso também um projeto de lei para a venda da Eletrobras com objetivo de concluir a operação em 2020. No entanto, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, embora seja defensor da medida, disse na semana passada que não haverá tempo hábil para analisar a proposta do governo ainda este ano.
O presidente anterior, Michel Temer, também tentou vender a estatal do setor elétrico, mas não conseguiu aval dos parlamentares.
"Acho que a privatização (da Eletrobras) é difícil este ano, o adiamento da eleição (municipal) vai atrasar e somado a isso o atraso que tivemos ano passado, não tivemos uma solução (sobre a privatização) entre Câmara e Senado, passou para esse ano, a pandemia atrasou", disse Maia, ao participar de live da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib).
Apesar disso, o último balanço apresentado por Mattar colocava a Eletrobras em uma lista de 15 estatais que estariam em processo de desestatização, junto com Correios, Telebras e outras menos conhecidas, como Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias (ABGF), Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social (Dataprev), Empresa Gestora de Ativos (Emgea) e Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp).
Já no artigo que publicou quarta (12/08) no portal Brazil Journal, o ex-secretário reconheceu que o governo não tem base no Parlamento para tornar os planos realidade.
"Muitas estatais como Eletrobras, Hemobrás, Correios e EBC necessitam de aprovação do Congresso num governo que não possui uma base de sustentação", escreveu.
Esse problema levou o Ministério da Economia a abandonar outra proposta cara a Mattar, a criação de uma marco legal para agilizar processos de privatização, chamada de "fast track". O objetivo era desburocratizar os trâmites necessários para venda de estatais.
O governo chegou a cogitar fazer essa simplificação por meio de decreto, evitando a necessidade de uma votação no Congresso. Rodrigo Maia reagiu dizendo que a medida seria ilegal.
"O arcabouço legal do processo de desestatização é complexo e moroso. São quinze agentes envolvidos, do Presidente ao ministro setorial, do TCU ao BNDES. Tudo torna o processo burocrático, lento e, por mais que alguns se esforcem, não conseguem acelerar as coisas", reclamou também Mattar, no artigo do Brazil Journal.
Ambição exagerada e falta de conhecimento da máquina pública
A saída de Mattar foi acompanhada da demissão de Paulo Uebel, responsável pela secretaria especial de desburocratização, incomodado com a demora do governo em enviar ao Congresso a reforma administrativa.
Com isso, o próprio Guedes reconheceu que houve uma "debandada" em sua equipe. Desde o início do governo deixaram seus cargos também Joaquim Levy (BNDES), Marcos Cintra (Receita Federal), Marcos Troyjo (Comércio Exterior), Rubem Novaes (Banco do Brasil), Caio Megale (Fazenda), e Mansueto Almeida (Tesouro Nacional).
Para o analista político Lucas Aragão, da consultoria Arko Advice, além da falta de articulação política, o trabalho de convencimento do Congresso sobre as privatizações e reformas econômicas foi dificultado pela falta de prioridades da equipe de Paulo Guedes.
"Além de negociar, é preciso priorizar. Congresso tem ficado cada vez mais autônomo desde a Dilma. Não há no Congresso digestão necessária para todas as ideias de PG (Paulo Guedes) e todas as prioridades de sua equipe", postou no Twitter após a saída de Mattar e Uebel.
"O Congresso tem espaço sim para reformas. Mas serão a conta-gotas, não de uma vez. Entupir o Congresso de PECs (propostas de emenda à Constituição) e PLs (projetos de lei) de reformas e privatizações pode parecer que o trabalho está avançando, mas na verdade o efeito é contrário", escreveu ainda.
O próprio Salim Mattar reconheceu que a equipe econômica precisou de tempo para aprender a lidar com a máquina pública. Dono da empresa de aluguel de veículos Localiza, sua experiência antes de ser secretário de Desestatização era toda no setor privado.
"Foi um ano de aprendizado para nós que viemos de fora. Em 2020, todos os nossos projetos serão acelerados porque agora temos um melhor conhecimento do funcionamento do governo", disse em entrevista ao jornal Valor Econômico no final de 2019 ao responder sobre os resultados limitados do primeiro ano do governo.
Em 2020, porém, não só as dificuldades do ano anterior continuaram, como os planos do governo e as prioridades do Congresso foram embaralhadas pela pandemia de coronavírus.
"Deixei o governo porque, em minha análise de esforço despendido versus resultados obtidos, a conta foi negativa. Concluí que dedicando meu tempo aos institutos liberais Brasil afora, posso continuar contribuindo para a construção de um país melhor, com menos estado, menos oneroso para o cidadão e menor interferência na vida privada", diz o artigo assinado por Mattar na quarta.
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