Logo Pagbenk Seu dinheiro rende mais
Topo

O inesperado renascimento da Bolsa de Caracas e como ele reflete a abertura da economia venezuelana

A Bolsa de Valores Caracas "renasceu" nos últimos meses, sinal de uma certa abertura da economia do país - AFP
A Bolsa de Valores Caracas 'renasceu' nos últimos meses, sinal de uma certa abertura da economia do país Imagem: AFP

Daniel García Marco - BBC News Mundo

20/12/2020 15h29

A incipiente e tímida abertura econômica que o governo socialista da Venezuela empreendeu nos últimos meses tem se refletido na Bolsa de Valores de Caracas.

Embora os especialistas sempre lembrem que a Bolsa não é a economia real do país, vêm dali alguns indícios de melhora econômica que também são percebidos nas ruas, onde grande parte da população ainda sofre para se alimentar.

A crise social e política que abala a Venezuela há anos, a hiperinflação e as sanções econômicas dos Estados Unidos levaram o governo do presidente Nicolás Maduro a acabar com as restrições e controles que caracterizaram o chavismo durante anos.

Agora, sem controle de preços e do câmbio, há um ambiente mais amigável para o setor privado e empresas transnacionais, que tentam atrair investimentos e receitas para os vazios cofres do Estado.

E a bolsa de Caracas, favorecida por essa certa liberdade, é um bom termômetro desse momento.

"É uma das poucas empresas do país que cresceu", disse Gustavo Pulido, presidente da Bolsa de Caracas em entrevista à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Nos últimos anos, a bolsa passou de 22 para 32 membros.

A Bolsa foi criada em 1947 e seu auge ocorreu no final dos anos 1990. No entanto, ela estava quase inativa desde que Hugo Chávez impôs controles de moeda em 2003.

Apesar do renascimento da Bolsa, o mercado venezuelano ainda é minúsculo, com movimento de apenas US$ 12 milhões (cerca de R$ 61 milhões) por ano, segundo estimativa de José Miguel Farías, diretor da MasValor Casa de Bolsa.

Os números refletem a retração da economia de um país que perdeu 75% de seu Produto Interno Bruto (PIB) desde 2013 e vive a terceira maior hiperinflação da história no mundo.

"Nossa capitalização de mercado caiu, e isso era de se esperar", admite Pulido.

"São muito menos empresas, porque a crise tem devastado boa parte delas. Muitas não vão abrir novamente, mas isso também abre caminhos para outras, para pessoas que aparecem com novas ideias", diz.

Dois fatores

Essas empresas agora estão liderando o que parece ser uma mudança na Venezuela.

Em 2017, foram quatro as empresas que emitiram dívida privada em Bolsa, "e este ano serão 32 e com valores que batem recordes todos os meses", enfatiza o presidente da Bolsa.

Existem dois fatores recentes que explicam esse renascimento.

O primeiro é a hiperinflação, que destruiu a capacidade de financiamento bancário.

O segundo fator, que limitou ainda mais os bancos, foram as restrições que a chamada "reserva legal" impôs ao setor desde 2019, ou seja, o montante de caixa que os bancos devem manter no Banco Central da Venezuela.

Segundo a Ecoanalítica, o crédito bancário na Venezuela caiu 80% no último ano e meio.

Dada a impossibilidade de os bancos oferecerem financiamento, as poucas empresas que sobreviveram no país buscaram na Bolsa de Valores uma solução.

"O mercado tem servido como forma de financiar as empresas que permanecem e que apostam em uma nova Venezuela, uma abertura econômica, uma mudança de modelo", diz Pulido.

Essa mudança é cada vez mais verbalizada por Maduro, que tem se mostrado "mais gentil" com o setor privado.

"Não fiquem de fora", ele pede também às transnacionais de países aliados. A ideia é vender a imagem de um país com "uma capacidade espantosa de recuperação".

E a Superintendência Nacional de Valores, dependente do Ministério da Fazenda, talvez seja o órgão governamental mais avançado nessa abertura.

Dívida em dólar

Em novembro, o governo Maduro autorizou um dos grandes acontecimentos recentes: a emissão de dívidas em dólar, moeda que aos poucos vai conquistando o comércio e a vida de milhões de venezuelanos nas ruas.

Segundo a Ecoanalítica, dois terços das operações financeiras na Venezuela são realizadas com outra moeda que não o bolívar, a oficial.

E, sem surpresa, o dólar também já está no mercado de ações.

A empresa Santa Teresa, principal produtora de rum do país, recebeu no mês passado autorização para emitir títulos de dívida em dólares, o que não acontecia desde os anos 1990.

A mesma empresa vendeu ações em janeiro, a primeira atividade desse tipo em 11 anos.

A outra grande novidade recente foi o IPO (oferta pública de ações na bolsa) pela primeira vez da farmacêutica Calox International, operação que há 20 anos não se via no mercado de Caracas.

"Parte da recuperação da economia vai passar por isso", diz o presidente de Santa Teresa, Alberto Vollmer, que compara a Venezuela com a China dos anos 1980, cujas empresas saíram da falência graças à bolsa.

O especialista José Miguel Farías cita também os exemplos da China e da Índia, cujo crescimento se baseou, entre outros aspectos, na inclusão financeira.

'Sem alternativa'

Vollmer faz parte de um grupo informal de empresários chamado "Otimistas Anônimos", que acredita que fazer negócios será lucrativo novamente na Venezuela porque Maduro não será capaz de reverter a abertura.

Pulido acredita que o governo "não tem outra alternativa" e que a bolsa pode ser o "motor" da mudança.

"O mercado vai se tornar uma pedra angular do processo de recuperação econômica", concorda Farías.

"O governo parece estar disposto a introduzir reformas controladas na economia que lhe deem mais espaço de manobra e reduzam a tensão social para manter o poder", disse Asdrúbal Oliveros, diretor da empresa de análises Ecoanalítica.

Oliveros descreve o momento no mercado de ações como algo ainda "extremamente pequeno para as necessidades da economia", embora veja lucros para as empresas que se beneficiam desses instrumentos.

E também para o futuro do país.

"Importantes incentivos estão sendo dados para a criação de uma cultura de bolsa, o que não era feito na Venezuela e que pode ser a semente para, sob outras condições, ter um mercado mais vigoroso, como o que a economia exige e que infelizmente não temos" .

Pulido admite que os "indicadores econômicos não são animadores", mas "a realidade de muitas empresas é outra: bons resultados e muito potencial".

Portanto, ele vê um apetite crescente nos investidores.

"A economia da Venezuela caiu tanto que desperta muito interesse em outros países, porque, quando ela mudar, a recuperação pode ser muito grande. Mesmo que seja pequena, será grande em termos percentuais e isso trará investimentos", diz.

Pulido observa que, embora em escala reduzida, cada vez mais empresários venezuelanos destrancam seus cofres e começam a abrir pequenas lojas para aproveitar essa abertura econômica e a onipresença do dólar, garantia de segurança contra o frágil bolívar.

Um país que 'sangra'

Mas para que tudo isso se consolide, será necessária uma real recuperação econômica, algo que parece bastante distante: o governo não é capaz de recuperar a produção de petróleo, e as sanções e a falta de acesso aos mercados financeiros não vão acabar enquanto continuar o conflito político entre o chavismo e a oposição.

Dezenas de países não reconhecem a presidência de Maduro nem a recém-eleita Assembleia Nacional, responsável por criar leis que poderiam aprofundar a reabertura econômica.

"É impossível que o mercado cresça de forma organizada se o país não parar de sangrar como vem fazendo desde o final de 2013 e entrar em fase de crescimento", diz Farías.

A abertura, pelo menos a do mercado de ações, parece incontornável.

Nos próximos meses, espera-se a criação de uma cesta de produtos e insumos agrícolas, "algo que parecia impossível no ano passado devido à regulamentação dos preços", destaca o consultor Antonio Martínez.

"É a prova de que o mercado de ações é visto como uma válvula para sair de problemas", acrescenta o especialista.

"As restrições que foram retiradas ao câmbio mudam para melhor as regras do jogo", afirma. "É um momento muito interessante. Estamos vendo isso no mercado, como nunca vimos antes."