Brumadinho: os próximos passos do processo contra a Vale nos EUA
O órgão regulador do mercado de capitais americano, a SEC (Securities and Exchange Commission), entrou com um processo contra a Vale na Justiça dos Estados Unidos ontem.
A agência americana alega que a mineradora mentiu para os investidores do mercado americano sobre as práticas de segurança empregadas em suas barragens no Brasil, ocultando os riscos ambientais e econômicos de seus empreendimentos e violando as leis de valores mobiliários do país.
Segundo acusação da SEC, as informações falsas foram divulgadas para os investidores antes do rompimento da barragem de Brumadinho (MG), que matou 270 pessoas em janeiro de 2019.
O órgão regulador americano exige no processo a imposição de multas, restituição monetária e outras compensações pelo que a agência chama de ganhos indevidos obtidos pela Vale a partir dos relatórios fraudulentos distribuídos.
A mineradora negou as acusações e afirmou que "defenderá vigorosamente este caso".
Sobre o que é o caso?
Diferentemente de outros processos abertos contra a Vale após o rompimento da barragem de Brumadinho que buscam responsabilizar a companhia pelas mortes ou danos ambientais causados pela tragédia, o caso iniciado pela SEC trata das informações divulgadas pela mineradora e como elas influenciaram a tomada de decisões de investidores.
A advogada Rebecca Bratspies, professora da Universidade da Cidade de Nova York, explicou à BBC Brasil que as denúncias alegam uma violação da lei federal e das normativas da SEC, que protege e regula o mercado de capitais americano, garantindo o funcionamento justo dos mercados de valores mobiliários.
"Esse processo não é diretamente relacionado às vítimas ou o dano ambiental, mas sim às alegações feitas aos investidores e ao SEC pela Vale e que podem ter induzido os investidores a acreditarem na segurança da empresa", diz.
Segundo a professora da FGV SP Viviane Muller, especialista em direito comercial, o objetivo da ação não é ressarcir os investidores, mas sim punir a companhia por aquilo que ela está sendo acusada.
"A ação foi anunciada pelo regulador do mercado americano, o SEC, que tem uma função semelhante à da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) no Brasil, e tem um caráter punitivo, buscando penas pecuniárias aos infratores", explica.
A própria CVM, aliás, abriu em abril de 2021 um processo sancionador contra o ex-presidente da Vale, Fabio Schvartsman, e o ex-diretor de ferrosos da companhia, Peter Poppinga, em um caso relacionado à tragédia de Brumadinho.
Diferente do processo da SEC, porém, a denúncia feita pela autarquia vinculada ao Ministério da Economia trata de irregularidades no cumprimento dos deveres fiduciários dos ex-executivos, ou seja, de seus deveres para resguardar os interesses dos beneficiários da empresa.
Quais são as acusações?
Em uma nota divulgada nesta quinta, a Securities and Exchange Commission detalhou as denúncias contidas no processo, elaboradas após uma investigação conduzida pela agência com assistência do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e da CVM.
Segundo a agência, a Vale divulgou informações falsas a partir de 2016 e até o rompimento da barragem de Brumadinho que prejudicaram a capacidade dos investidores de avaliar os riscos representados pelos títulos da Vale na Bolsa de NY.
"A partir de 2016, a Vale manipulou várias auditorias de segurança de barragens; obteve vários certificados de estabilidade fraudulentos; e regularmente enganou governos locais, comunidades e investidores sobre a segurança da barragem de Brumadinho por meio de suas divulgações ambientais, sociais e de governança", diz a SEC.
A denúncia alega ainda que, há anos, a Vale sabia que a barragem de Brumadinho, construída para conter subprodutos potencialmente tóxicos das operações de mineração, não atendia aos padrões internacionalmente reconhecidos de segurança para barragens, mas escondeu essa informação.
Para a SEC, relatórios de sustentabilidade e outros registros públicos divulgados pela Vale garantiam de forma fraudulenta aos investidores que atuam na Bolsa de NY que a empresa adotava práticas internacionais rígidas de segurança e que 100% de suas barragens haviam sido certificadas como estáveis.
A agência alega que os lucros obtidos pela mineradora com a negociação de seus títulos na Bolsa de NY foram indevidos, já que a mineradora supostamente ocultou os riscos ambientais e econômicos representados por sua barragem e "enganou os investidores".
"Muitos investidores confiam em divulgações governança ambiental, social e corporativa, como as contidas nos Relatórios de Sustentabilidade anuais da Vale e outros registros públicos para tomar decisões de investimento bem informadas", afirma Gurbir S. Grewal, diretor da divisão de execução da SEC, na nota divulgada pela agência.
"Ao manipular essas divulgações, a Vale agravou os danos sociais e ambientais causados pelo trágico rompimento da barragem de Brumadinho e prejudicou a capacidade dos investidores de avaliar os riscos representados pelos títulos da Vale."
Em seu comunicado, a agência afirma ainda que o objetivo do processo é a aplicação de medidas cautelares e penalidades civis contra a Vale, além da exigência do pagamento de uma restituição mais juros.
O que diz a Vale?
Em comunicado divulgado ao mercado, a Vale confirmou o protocolamento da ação na Justiça americana, mas negou todas as acusações.
"A Vale nega as alegações da SEC, incluindo a alegação de que suas divulgações violaram a lei dos Estados Unidos, e defenderá vigorosamente este caso", diz a nota.
A mineradora ainda reiterou seu compromisso com a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem.
"A Companhia reitera o compromisso que assumiu logo após o rompimento da barragem, e que a tem guiado desde então, para a remediação e a reparação dos danos causados pelo evento", disse no comunicado.
O que acontece a partir de agora?
As denúncias foram protocoladas em uma corte federal de Nova York.
Segundo os especialistas consultados pela BBC Brasil, o processo agora seguirá o curso natural de qualquer outra ação civil no país.
Dessa forma, a Vale será chamada a responder às acusações e terá a oportunidade de, se desejar, apresentar sua defesa para arquivar o processo.
Mas segundo Rebecca Bratspies, é bastante improvável que qualquer tentativa do tipo seja bem-sucedida. "Já houve uma investigação e o processo foi protocolado na vara correta da Justiça federal americana", afirma.
Nesse caso, a Justiça americana passaria então a analisar o processo, convocar depoimentos e recolher novas provas se necessários.
"O SEC tem jurisdição para solicitar informações e documentos à empresa e provavelmente fez isso durante sua investigação. Mas isso não impede que surjam novas provas e que a Justiça intime alguns dos envolvidos a prestar depoimento ou entregar documentos ao longo da ação", explica o professor de Direito da Universidade Pace e diretor do Instituto Brasileiro-Americano de Direito e Meio Ambiente (BAILE), David N. Cassuto.
Segundo o especialista, a Vale teria então duas alternativas: esperar o caso ir a julgamento ou tentar chegar a um acordo.
"Mas se houver um acordo, bem certamente será porque a Vale concordou em pagar uma multa muito significativa", diz Cassuto.
Em caso de condenação em julgamento, a professora Rebecca Bratspies afirma também esperar uma penalização financeira bastante alta. "Mas se for para julgamento, o processo pode levar anos antes de ser concluído", diz.
A advogada especializada em justiça ambiental afirma ainda que pode haver procedimentos administrativos internos na SEC para responsabilizar e regulamentar de forma mais efetiva as negociações da Vale no futuro.
Quais podem ser as consequências desse processo?
Segundo os especialistas consultados pela BBC Brasil, a Vale pode enfrentar, além das penalidades fixadas pela Justiça americana, consequências em termos de reputação.
"Se a Vale for condenada na Justiça americana, seu valor como companhia aberta poderia ser prejudicado e os investidores ao redor do mundo certamente passariam a prestar mais atenção antes de tomar qualquer decisão", diz David N. Cassuto.
Para a professora Viviane Muller, porém, a empresa já enfrentou danos gigantescos à sua reputação logo após o rompimento da barragem em 2019.
De qualquer forma, a especialista vê essa ação como parte de um movimento maior do atual governo dos Estados Unidos em prol da justiça ambiental.
"Essa ação da SEC faz parte de uma agenda que busca conciliar a proteção do investidor com a sustentabilidade e a governança ambiental, social e corporativa", diz.
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