IPCA
0,83 Abr.2024
Topo

Como um trader do Citigroup transformou ativos tóxicos em ouro

Dakin Campbell e Donal Griffin

09/06/2016 16h07

(Bloomberg) -- O memorando aterrissou em um domingo de novembro. Era 2007 e os títulos lastreados por hipotecas subprime estavam agitando os mercados e colocando os bancos em perigo. O CEO do Merrill Lynch, Stan O'Neal, tinha acabado de pedir demissão sob pressão e havia rumores de que o CEO do Citigroup, Chuck Prince, estava de saída.

De modo que, em retrospectiva, o memorando do dia 4 de novembro enviado aos funcionários da divisão de mercados do Citigroup parece ousado. Enquanto outros bancos estavam tentando se livrar de títulos tóxicos e o Citigroup realizava uma baixa contábil de US$ 11 bilhões em seus ativos, Jamie Forese, então chefe de trading, e Paco Ybarra, diretor de renda fixa, tinham outros planos. Eles anunciaram que iriam transferir a crescente dívida hipotecária do banco para uma nova equipe e traçar um caminho para o futuro. Essa era, disseram eles, uma "grande oportunidade".

O homem que eles logo chamariam para administrar essa estratégia era Mark Tsesarsky, um refugiado da Ucrânia com olhos azuis intensos e comportamento sereno. Na época, T-Man, como ele era conhecido no banco, era diretor de situações especiais para securitizações, o que significava que ele fazia apostas em nome do Citigroup com notas lastreadas por hipotecas e outros ativos. Agora seus chefes estavam lhe pedindo que ajudasse a limitar os prejuízos de outra pessoa na carteira de obrigações de dívida com garantia (CDOs, na sigla em inglês) - instrumentos com nomes como Bonifacius e Jupiter que ameaçavam destruir o banco - e encontrasse uma maneira de lucrar com a turbulência.

Durante os oito anos seguintes, Tsesarsky e sua equipe fizeram exatamente isso. Eles reergueram o banco como o maior de Wall Street para CDOs, não emitindo títulos, mas comprando bilhões de dólares de dívida, mantendo-a enquanto o valor subia e negociando com os clientes. No período de três anos finalizado em dezembro de 2015, esse punhado de traders conseguiu quase US$ 2 bilhões em receita, mais do que qualquer outra mesa do banco, de acordo com pessoas familiarizadas com as operações da empresa. Esse desempenho foi possível graças a um resgate sem precedentes do sistema financeiro, incluindo um resgate financeiro do Citigroup e uma enxurrada de dinheiro do banco central que elevou os preços dos ativos.

Tsesarsky, 54, preferiu não comentar. Ele não dá nenhuma entrevista desde 1999, quando disse ao jornal Jewish Week que ter sofrido discriminação por ser judeu na antiga União Soviética o "tornou mais forte e diferente". Altos executivos do banco também não quiseram comentar. Mas a história de como ele conseguiu fazer isso, montada a partir de conversas com mais de uma dezena de atuais e antigos executivos, mostra que, mesmo em um Wall Street mais seguro e em um banco que diz que quer ser mais chato, um trader pode apostar bilhões de dólares nos mercados de dívida, muitas vezes obscuros.

Em um dia ensolarado deste segundo trimestre, trabalhadores de construção com capacetes conversam em frente aos dois edifícios do Lower Manhattan que durante muito tempo abrigaram o banco de investimento do Citigroup e que, neste ano, se tornaram a sede da empresa. Michael Corbat, que assumiu o cargo de CEO em 2012, vem reestruturando o Citigroup, vendendo ativos indesejados, reduzindo sua presença mundial, aumentando o capital e cortando o número de funcionários. O andaime que cobre a parte inferior de um dos edifícios é um sinal das mudanças.

Mas no recinto de operações onde Tsesarsky tem uma mesa, no topo do outro edifício, pouca coisa mudou. Um homem magro, que prefere ternos e gravatas de estilistas, Tsesarsky dirige a unidade de negociação de títulos lastreados por ativos sob um véu de confidencialidade. As CDOs são apenas uma pequena parte de um império que inclui títulos vinculados a empréstimos automotivos ou de cartões de crédito, hipotecas e dívidas parceladas de consumidores. Durante duas décadas, Tsesarsky dividiu a liderança com Jeffrey Perlowitz, que anunciou sua aposentadoria em março.

Para entender como Tsesarsky transformou ativos tóxicos em ouro vale a pena ir aos primórdios do mercado. Na década de 1970, menos de dez anos antes de Tsesarsky entrar na Salomon Brothers, em 1986, um trader de lá criou o primeiro título hipotecário privado reunindo empréstimos hipotecários e distribuindo os fluxos de dinheiro em diversos títulos. A inovação espalhou os riscos por milhares de empréstimos, facilitando sua negociação e atraindo investidores que não queriam comprar hipotecas individuais. Isso catapultou a Salomon para o topo de Wall Street.

Na virada do século, o sucesso da ideia levou executivos do setor bancário a um instrumento pouco usado com um nome esotérico, a obrigação de dívida com garantia. Com um funcionamento parecido com o do título hipotecário, uma CDO reunia títulos existentes em uma nova dívida. Era a segunda geração de um passe de mágica que possibilitou que até mesmo hipotecas subprime fossem transformadas em papéis com nota AAA. O mercado decolou e cresceu de US$ 68 bilhões em 2000 para US$ 521 bilhões em 2006, de acordo com dados da Associação dos Mercados Financeiros e de Valores Mobiliários. O Citigroup, que tinha absorvido a Salomon em 1998, tornou-se o maior emissor de CDOs.

Quando os preços das casas dispararam em 2006, os investidores se viram longe demais dos mutuários para julgar o risco dos títulos e saíram correndo. Os bancos tiveram dificuldade para se desfazer de seus estoques. Os agentes intermediários mais agitados - entre eles Citigroup, Merrill Lynch e UBS - sofreram prejuízos de bilhões de dólares à medida que o valor da dívida despencava. Na época do memorando enviado por Forese, chefe de trading, em novembro de 2007, não estava claro se sobraria algo mais que escombros para Tsesarsky gerenciar. Em dezembro, analistas do Barclays projetaram que as parcelas mais seguras dos títulos poderiam chegar a perder 80 por cento de seu valor. Muitos consideraram que o instrumento tinha fracassado e boa parte de Wall Street deu o mercado como morto.

O Citigroup, no entanto, não estava pronto para desistir. Executivos, inclusive Forese, viram sua experiência na unidade como uma chave para o crescimento. Somando-se a isso as mais de duas décadas de Tsesarsky nos mercados hipotecários, a diretoria do Citigroup achou que poderia ganhar dinheiro e evitar passar outra vez tão perto da morte, de acordo com um executivo a par das discussões. Em resumo, o banco decidiu adotar uma posição comprada.

Dez meses depois, o Lehman Brothers declarou falência, mergulhando o mundo em uma crise que colocou o sistema financeiro em risco. O Citigroup precisou de uma transfusão do governo de mais de US$ 500 bilhões, incluindo empréstimos emergenciais e garantias de ativos - pelo menos US$ 14 bilhões para as hipotecas de risco da carteira de Tsesarsky - e o Departamento do Tesouro dos EUA ficou com uma fatia de 27 por cento do banco.

Mesmo assim, a equipe de Tsesarsky tinha mais liberdade que as outras, disse um ex-colega. Em pelo menos uma ocasião, Tsesarsky ajudou a convencer a diretoria a dar mais recursos à unidade, superando o Bank of America e outros rivais que não queriam comprometer o capital adicional.

O Citigroup estava preparado quando o Federal Reserve Bank de Nova York leiloou uma carteira de CDOs em 2012. A equipe sondou clientes e coletou pedidos, fazendo apresentações e mais apresentações sobre seu profundo conhecimento desses títulos e seus preços baratos, de acordo com uma pessoa familiarizada com a estratégia. Nos casos em que via algo que era bom demais para deixar passar, mas não conseguia convencer os investidores a apostarem, o banco usava seu próprio dinheiro para comprar a dívida, disse a pessoa. Dos mais de US$ 45 bilhões vendidos pelo banco central, o Citigroup arrebatou US$ 6,3 bilhões, pagando em média US$ 0,38 por dólar.

Durante os anos seguintes o banco colheu os frutos e se tornou a fonte por excelência para os mais de 500 fundos de investimentos, hedge funds e outras instituições que ainda negociavam CDOs, de acordo com uma pessoa familiarizada com as operações do Citigroup. E, como havia menos concorrência em um mercado sem liquidez, a diferença entre o que o Citigroup pagou pelos títulos e o valor pelos quais os vendeu foi maior do que nas partes menos obscuras dos mercados de dívida, disse a pessoa.

O banco também acumulou estoque e lucrou quando essas posições aumentaram de valor. Nos primeiros anos depois da crise havia muitos bons negócios: grande parte do mercado de CDO era negociada com grandes descontos. À medida que os preços das casas aumentaram, os mutuários refinanciaram os empréstimos ou começaram a fazer pagamentos e os títulos se recuperaram.

Embora não esteja claro quanto o Citigroup ganhou com o aumento do preço do estoque, uma coisa é certa: por volta de 2015 o banco tinha o controle absoluto do mercado de CDO. Ele negociou cerca de US$ 6 bilhões em títulos com aproximadamente 150 clientes naquele ano, de acordo com uma pessoa familiarizada com a operação. Isso totalizou cerca de US$ 700 milhões em receita, ou 80 por cento do mercado, disse outra pessoa. A soma, mais de 6 por cento do total obtido pelo banco com a negociação de títulos no ano passado, foi grande o suficiente para evitar que a unidade registrasse seu pior desempenho desde antes da crise financeira. A equipe registrou US$ 700 milhões em 2013 e US$ 500 milhões em 2014, disse essa pessoa. Os ganhos ajudaram a maior operação de mercados securitizados executada por Tsesarsky e Perlowitz a empatar no primeiro lugar em Wall Street, de acordo com a Coalition, uma empresa de pesquisa com sede em Londres.

O sucesso de Tsesarsky com a CDO - uma vitória de US$ 2 bilhões sobre a qual Corbat, Forese e outros executivos da diretoria não querem comentar - aponta para o contínuo apetite por risco do Citigroup. O banco mais do que dobrou suas participações de derivativos durante a última década, de acordo com fatos relevantes, e intensificou a negociação de commodities.

Danielle Romero-Apsilos, porta-voz do Citigroup, diz que o banco utiliza "práticas de gerenciamento de risco prudentes" em sua unidade de títulos lastreados por ativos. Mas o segredo que envolve a unidade de Tsesarsky e o histórico de complicados produtos estruturados em Wall Street levantam dúvidas sobre o compromisso de Corbat de tornar a empresa mais segura e mais chata.

"Ninguém tem realmente nenhuma ideia dos riscos que esses bancos estão assumindo e, portanto, da ameaça que eles representam para o sistema financeiro a todo momento", disse Dennis Kelleher, presidente da Better Markets, uma organização sem fins lucrativos que defende a adoção de normas financeiras mais estritas.

Esses riscos podem estar diminuindo, pelo menos para a unidade de CDO, porque continua havendo poucas transações novas e as antigas estão se desmantelando ou rendendo lucros. Para Tsesarsky, isso significa que ele tem muito tempo para meditar sobre os próximos passos durante os mais de seis quilômetros que costuma caminhar entre o trabalho e a casa do Central Park West, onde mora com a esposa, que é rabina, e seus quatro filhos. Muitas coisas o mantêm ocupado: ele é membro do conselho de uma sinagoga do Upper West Side que afirma ser a mais antiga congregação judaica dos EUA e ele contribui para causas pró-Israel e judaicas. Uma vez ele comprou passagens de avião para 250 russos que imigravam para Israel e foi com eles na viagem. "As pessoas em Wall Street se tornam cínicas e acham que só o dinheiro é importante na vida", disse ele ao jornal Jewish Week em 1999. "A indiferença realmente me incomoda".

Mesmo assim, Tsesarsky está sempre procurando uma transação lucrativa. "Ele tem essa capacidade de ver o jogo a longo prazo e um tato para o mercado e para saber para onde ele está indo", disse David Finkelstein, ex-colega e executivo sênior do trust de investimento imobiliário Annaly Capital Management. "Quando ele vê uma oportunidade, ele mergulha de cabeça".

Campbell e Griffin cobrem bancos e finanças em Nova York e Londres, respectivamente.