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Crise hídrica expõe falhas do modelo elétrico brasileiro

Reservatório da usina hidrelétrica de Furnas, em São José da Barra (MG) - Paulo Whitaker/Reuters
Reservatório da usina hidrelétrica de Furnas, em São José da Barra (MG) Imagem: Paulo Whitaker/Reuters

Anne Warth e Marlla Sabino

Brasília

20/06/2021 07h30Atualizada em 20/06/2021 09h03

Em meio à pior crise hídrica dos últimos 90 anos, o país volta a discutir os riscos de ter apagões e de apelar a um racionamento —alternativa encontrada para a crise em 2001. Falhas no planejamento e na operação do sistema elétrico, bem como no modelo de formação de preços de energia, são apontadas como as causas por trás da situação que já afeta a inflação, ameaça o crescimento econômico e pode até colocar em xeque o projeto de reeleição do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Presidente da PSR, maior consultoria de energia do país, Luiz Barroso afirma que o planejamento do setor é centrado na chamada garantia física, indicador que traduz quanto uma usina contribui para a segurança do suprimento. "O problema é que, no Brasil, a garantia física nem garante, nem é física", disse.

Ele explica que a garantia física é calculada com base em modelos computacionais que precisam ser aperfeiçoados —a metodologia foi definida em 2004. "Ela não representa a expectativa de produção de uma usina, e sim seu valor econômico ao sistema", diz.

Um exemplo é Belo Monte, no Pará, que tem uma garantia física de 4.571 megawatts médios. O número não representa com precisão a característica de uma usina a fio d'água e que depende das chuvas: nos meses úmidos, gera o triplo da energia produzida em meses mais secos, em que a capacidade é de 1.963 megawatts médios.

Isso significa que, nos meses úmidos, Belo Monte gera o suficiente para abastecer famílias e empresas dos estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. Nos secos, a produção é capaz de suprir apenas Pernambuco.

Se não traduz o que ocorre com a geração de energia, a garantia física é usada como referência para o quanto elas podem vender em contratos —ou seja, possui importância comercial. É por isso que há resistência a qualquer iniciativa do governo de recálculo das garantias físicas e de ajuste desses números para patamares mais realistas.

Nos últimos 20 anos, destaca Barroso, houve só uma revisão, em 2017, e ainda assim muitas empresas foram à Justiça para não perder receita. Uma garantia física superestimada, como a que o país tem hoje, significa, também, menor necessidade de contratação de mais usinas em leilões para ofertar energia porque o sistema diz que a quantidade é suficiente.

Além disso, o modelo de cálculo de preços, também usado para estimar a garantia física, não representa em detalhes o parque gerador. Tampouco é alimentado com dados relativos às mudanças climáticas, que afetam as chuvas, e ao uso múltiplo das águas.

Outro fator que a Barroso destaca é que a performance das hidrelétricas tem sido pior do que o esperado já há alguns anos. Em 2012, a sua consultoria estimou que as usinas gastavam 4% a mais de água do que o necessário para produzir um mesmo megawatt-hora —hoje, gastam 2%, nível ainda ruim.

Entre as hipóteses, estão assoreamento de reservatórios, turbinas antigas e até roubo de água para irrigação e piscicultura, além de restrições não capturadas no modelo de planejamento.

"Em muitas usinas, não conseguimos armazenar mais água porque precisamos manter um fluxo mínimo de água para atender outros usos. E isso não é bem representado no cálculo da garantia física pela simplificação do modelo", diz. "Em momento de estresse, o ideal é fechar o ralo para encher a pia, mas isso não é simples."

Para ele, o sistema vai mudar, com hidrelétricas como bateria, compensando a geração das fontes intermitentes, como solar e eólica. "As renováveis ajudam a compensar a variabilidade das hidrelétricas", afirma.

O ex-diretor geral do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) Luiz Eduardo Barata concorda. Ele defende a expansão do parque de eólicas e solares. "As térmicas nos ajudam a reduzir esse tipo de problema, mas continuo achando que não são a solução. Precisamos colocar mais fontes renováveis, como eólica e solar, a ponto de recuperar os níveis dos reservatórios", afirma.

Apagão

Para o presidente da consultoria PSR, Luiz Barroso, o apagão é um risco, mas não uma certeza. Segundo ele, o governo tem hoje um rol de alternativas maior do que tinha em 2001, quando houve racionamento. Se a situação é difícil no Sudeste e no Centro-Oeste, onde ficam as principais hidrelétricas, o nível de armazenamento no Norte, no Nordeste e mesmo no Sul é mais confortável.

O sistema de linhas de transmissão é hoje mais robusto, o que permite transferências de energia de uma região para outra antes impossíveis. A oferta de energia é maior, e as fontes, mais diversas, com mais eólicas e solares termoelétricas. É possível ainda recorrer à importação de energia da Argentina e do Uruguai.

As informações são do jornal "O Estado de S. Paulo".