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Papelão, ácido cancerígeno, exagero da PF: você entendeu a Carne Fraca?

Guilherme Stutz/Futura Press/Estadão Conteúdo
Imagem: Guilherme Stutz/Futura Press/Estadão Conteúdo

Ricardo Marchesan, Thâmara Kaoru e Nivaldo Souza

Do UOL e colaboração para o UOL, em São Paulo

25/03/2017 04h00

A divulgação da operação Carne Fraca pela Polícia Federal deixou muitos consumidores com dúvidas sobre a qualidade dos alimentos e os riscos à saúde.

Especialistas consultados pelo UOL dizem, porém, que não há motivo para pânico e que houve exagero e confusão em relação a suspeitas de uso de carne podre, ácidos cancerígenos e papelão.

Veja algumas perguntas e respostas sobre o caso.

É perigoso comer carne brasileira hoje?

Na terça-feira (21), a Polícia Federal divulgou nota, assinada em conjunto com o Ministério da Agricultura, afirmando que as irregularidades apuradas pela Operação Carne Fraca são "pontuais" e "não representam um mau funcionamento generalizado do sistema de integridade sanitária brasileiro".

"O Sistema De Inspeção Federal (SIF) brasileiro já foi auditado por vários países que atestaram sua qualidade. O SIF garante produtos de qualidade ao consumidor brasileiro", diz a nota.

Para Regina Célia Santos Mendonça, professora de tecnologia de produtos de origem animal da Universidade Federal de Viçosa (UFV), não é perigoso comer carne. "A indústria de carne brasileira está muito bem, no momento, com muitos profissionais qualificados. A gente tem um produto de muito boa qualidade."

Mario Luiz Chizzotti, professor de cadeia produtiva da carne do departamento de Zootecnia, também da UFV, concorda. "De jeito algum [é perigoso]. Totalmente seguro", afirma. "Pode comer carne tranquilamente."

Os dois dizem que os processos de controle de qualidade são confiáveis e que as irregularidades verificadas são casos isolados, que não representam a realidade do mercado como um todo, não devendo ser generalizados.

O preço da carne deve cair?

Segundo Otto Nogami, professor de economia do Insper, a tendência é que os consumidores comprem menos carne. "Em um primeiro momento, como consequência imediata, é inevitável a queda na demanda. As pessoas passam a comprar menos e, para desovar o estoque, a tendência natural é o preço começar a cair", diz.

Já o presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Carnes do Estado de São Paulo, Manuel Henrique Farias Ramos, afirma que ainda é preciso esperar o comportamento do consumidor e do mercado externo para saber se haverá queda no preço da carne.

Posso identificar uma carne estragada, mas que esteja "disfarçada" como boa?

Os especialistas afirmam que, se a carne estiver estragada, é possível perceber pelo aspecto, cheiro e sabor, porque essas características são difíceis de serem disfarçadas com qualquer aditivo.

O professor Mario Luiz Chizzotti afirma que a indústria não usa nenhum aditivo na carne in natura (fresca, que não foi processada), e que as irregularidades nos frigoríficos citados pela Polícia Federal na Operação Carne Fraca são em carnes processadas (como salsichas e linguiças, por exemplo).

Ele afirma, porém, que mesmo que alguma empresa tentasse usar algo para mascarar uma carne in natura estragada, isso "não seria efetivo" --poderia até mascarar a cor, mas não alteraria o sabor ou o cheiro de estragado.

"Carne é um produto muito delicado", afirma a professora Regina Mendonça. "Qualquer alteração, ela começa a ser perceptível e, muitas vezes, não é fácil de controlar. Não é 'maquiável', em que simplesmente se passa um produtinho e vai parecer que está normal. Não funciona desse jeito."

Quais empresas são suspeitas e quais as acusações?

Clique aqui para ver a lista completa.

O Ministério da Agricultura divulgou os motivos pelos quais 21 empresas da Operação Carne Fraca estão sendo investigadas (uma delas, a Peccin, entra duas vezes na conta porque são duas fábricas diferentes em investigação).

Há suspeitas de venda de carne estragada e de corrupção de fiscais. Seis delas são suspeitas de vender carne deteriorada, vencida ou alterada. A maioria das 21 citadas não tem relação com carne estragada, mas com problemas administrativos, segundo o ministério.

É possível que tenha sido colocado papelão nas carnes?

A PF divulgou áudio em que um funcionário da BRF fala que o "problema é colocar papelão lá dentro do CMS também”. A sigla significa "Carne Mecanicamente Separada", de acordo com a Polícia Federal. "Eu vou ver se eu consigo colocar em papelão. Agora, se eu não conseguir em papelão, daí infelizmente eu vou ter que condenar", diz o funcionário.

Os investigadores entenderam se tratar da mistura de papelão com carne para fazer produtos enlatados. A BRF negou com veemência que isso possa ocorrer. A empresa afirma que a PF cometeu "claro e gravíssimo erro" ao interpretar o áudio, que se referia a embalagens de papelão para armazenar produtos.

A professora Regina Mendonça diz que a versão da BRF é crível, e que não faria sentido adicionar papelão à carne, porque isso não traria nenhum benefício. Pelo contrário: aceleraria o processo de apodrecimento.

"O produto [carne] estraga com muita rapidez. Aumenta a deterioração, porque [o papelão] é uma matéria estranha extremamente contaminada", afirma. 

Ela diz que, caso pedaços de papelão aparecessem em algum produto, seria consequência de um erro, uma contaminação indesejada, não algo premeditado. Apesar dessa contaminação ser possível, seria um "descuido imperdoável", segundo ela, porque não é permitido papelão perto das linhas de produção, justamente para evitar esse tipo de situação. Ainda assim, a professora afirma que o consumidor perceberia a presença na carne.

Foi encontrado ácido ascórbico ou ácido sórbico nas carnes? Isso é permitido?

A Polícia Federal afirma que o frigorífico Peccin Industrial Ltda. fazia uma “maquiagem” em carnes estragadas para depois empregá-las na fabricação de salsichas e linguiças. A maquiagem era realizada com o uso da “substância cancerígena ácido ascórbico” (vitamina C). No despacho assinado pelo juiz Josegrei da Silva, a Peccin é acusada também de colocar ácido sórbico (conservante) na carne de frango.

A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), contudo, informa que as substâncias não são cancerígenas. Tanto o ácido ascórbico quanto o sórbico são classificados pelo órgão como aditivos alimentares autorizados. Mas eles devem obedecer a quantidades predeterminadas.

"Em relação ao ácido ascórbico, também conhecido como vitamina C, seu uso é autorizado como antioxidante em algumas categorias de produtos cárneos, ou seja, com função de retardar o aparecimento de alterações oxidativas", diz a Anvisa. 

A professora Regina Mendonça diz que essa ação antioxidante da vitamina C evita que a gordura desenvolva um ranço, com sabor desagradável. Mesmo assim, esse efeito tem um limite; por isso, não adiantaria colocar o aditivo em excesso. Seria apenas um desperdício da substância. "A indústria não gasta dinheiro se não vai adiantar nada", diz.

"O ácido sórbico, por sua vez, é um aditivo autorizado em alguns produtos cárneos com a função de conservador, ou seja, para impedir ou retardar a alteração dos alimentos provocada por microrganismos ou enzimas. Essa substância pode ser empregada nos produtos secos, curados e/ou maturados embutidos ou não e nos produtos salgados crus", diz a Anvisa.

O ácido sórbico é usado para tratamento de produtos que podem desenvolver mofo na superfície, como a carne seca, de acordo com a professora. A professora diz que a substância é usada na produção de outros alimentos industrializados também, como o pão.

O professor de microbiologia de alimentos da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Eduardo Tondo explica que “quando a carne estraga, normalmente por não ser bem armazenada, ela fica escurecida". "O ácido ascórbico pode devolver a cor vermelha da carne. Ela volta a parecer saudável para o consumo e engana quem for comer.”

Esses ácidos são cancerígenos?

De acordo com a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), as substâncias não são cancerígenas. Ambas constam na lista de aditivos alimentares aprovados pelo órgão.

Na lista da Anvisa, o ácido sórbico aparece na categoria de conservantes e pode ser usado na dosagem de 0,02 gramas por 100 gramas de carne, e que só podem ser usados na superfície, do lado de fora do produto. Já o ácido ascórbico, mais conhecido como vitamina C, é autorizado na "quantidade suficiente para obter o efeito".

Se forem consumidos em excesso, é possível que façam mal ao organismo, afirma a Anvisa.

Há bactéria salmonella em alguma carne? 

A salmonella pode causar falta de apetite, náuseas, vômitos, diarreia, dores abdominais e febre. Há também o risco de que a contaminação evolua para uma infecção disseminada, que atinja diversos órgãos.

Em diálogos interceptados pela PF, funcionários da BRF demonstram preocupação com a contaminação pela bactéria salmonella em uma das unidades da empresa, em Mineiros (GO). A investigação apontou também que o esquema de corrupção acelerou a certificação fitossanitária de granjas da empresa. Uma escuta aponta, ainda, que a BRF teve uma carga de carne com salmonella proibida de entrar na Itália. (Clique aqui para saber mais)

A BRF nega qualquer tipo de irregularidade. Em nota, o Ministério da Agricultura afirma que "a salmonela é uma bactéria comum" em animais, especialmente aves, e que verifica se a presença da bactéria está dentro de níveis que não oferecem risco à saúde pública. Se for detectado risco, essa carne pode ser cozida e usada na fabricação de outros produtos, mas não pode ser vendida crua. 

É verdade que a PF pegou só uma amostra de carne estragada em uma empresa?

Em dois anos de investigação, a Polícia Federal fez apenas um laudo técnico em uma das empresas investigadas para embasar a Operação Carne Fraca, e usou informações de outro laudo de 2015, que faz parte de um processo administrativo do Ministério da Agricultura. 

O delegado Roberto Biasoli, responsável pelas investigações, afirmou na quarta-feira (22) que "não foram realizados outros laudos" devido à "dificuldade de se identificar quais produtos estavam envolvidos em fraude ou onde pudessem ser encontrados, sem que se quebrasse o sigilo necessário à investigação".

Apesar das críticas sobre a falta de laudos técnicos, o delegado defendeu a operação com base em outras provas da investigação, como escutas, depoimentos e quebras de sigilo bancário.

Houve exagero ou generalização da PF na operação?

Os especialistas consultados pelo UOL acreditam que sim. "Houve uma distorção das informações. Elas foram colocadas de uma forma muito exagerada, fora do contexto", afirma Regina Mendonça.

"No Brasil, infelizmente, em qualquer escala, é possível ter corrupção. Mas a denúncia também não é sobre todo o sistema. É pontual, em cima de uma regional [a maior parte das empresas investigadas fica no Paraná]", diz Mario Luiz Chizzotti.

A forma como a operação foi divulgada também causou mal-estar entre a PF e a Justiça, que, segundo fontes, esperava uma comunicação mais focada no esquema de corrupção, não na qualidade da carne.

A mensagem de que toda a carne brasileira pode conter papelão, salmonella, ácido e outros aditivos irritou particularmente o juiz da 14ª Vara de Curitiba, Marcos Josegrei da Silva, responsável pela operação. Ele havia sugerido cautela técnica à PF em seu despacho para que a narrativa se construísse no objeto da investigação: a corrupção. Mas foi ignorado pela PF.

O presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Carlos Eduardo Sobral, apontou “falha de comunicação” na divulgação da investigação, que "talvez tenha gerado essa interpretação de que aqueles fatos eram um problema sistêmico de todo o mercado produtivo brasileiro".

Na terça-feira (21), o delegado Roberto Biasoli, responsável pelas investigações, recuou e divulgou uma nota conjunta com o secretário-executivo do Ministério da Agricultura, Eumar Roberto Novacki. Nela, atestam que o Sistema de Inspeção Federal (SIF) "garante produtos de qualidade ao consumidor brasileiro" e que ele "já foi auditado por vários países que atestaram sua qualidade".