Acordo com União Europeia desafia força decadente da indústria brasileira
O acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia coloca a indústria brasileira diante de um desafio de vida ou (quase) morte.
Ou ela evolui e passa a ser mais competitiva ou diminui e se torna ainda menos importante na economia nacional. Analistas ouvidos pelo UOL afirmam que se prevalecer a segunda alternativa as consequências serão graves para o país.
A CNI (Confederação Nacional da Indústria) projeta crescimento no curto prazo, mas reconhece que o desafio é grande. O acordo, que ainda precisa ser aprovado pelos parlamentos, prevê a redução de tarifas de importação de produtos europeus ao longo dos anos. Se a indústria brasileira não conseguir competir com os importados nem abrir novos mercados, o país ficará em uma situação mais frágil, com dependência econômica ainda maior de matérias-primas como minérios e produtos agrícolas.
"É um acordo que vai impactar o Brasil de uma forma que nenhum outro impactou. Como ele é mais previsível [referência ao calendário de redução de tarifas por setor] e também traz ganhos de acesso ao Brasil no exterior, há chances de que, se o governo e o setor empresarial fizerem bem o dever de casa, a gente aproveite bem essa nova etapa da nossa economia mais internacionalizada", diz Fabrizio Panzini, gerente de Negociações Internacionais da CNI.
Nem todas as informações sobre o acordo foram divulgadas, mas já se sabe que tarifas de importação de produtos industrializados europeus serão reduzidas ou eliminadas em até 15 anos. A indústria brasileira tem pela frente, então, uma luta contra o relógio.
"A concorrência com produtos europeus vai aumentar. A União Europeia é o berço de várias indústrias. Vai gerar uma pressão competitiva no país, mas é uma pressão mais planejada. Ao menos, você tem um calendário planejado", comenta o representante da CNI.
Que setores podem se dar bem com o acordo?
A CNI estima que os setores têxtil, de equipamentos de transporte, de produtos de metais e de madeira crescerão com o acordo.
Os professores Paulo Roberto Feldmann, da FEA-USP (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo), e Célio Hiratuka, integrante do Núcleo de Economia Industrial do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), acreditam que indústrias do setor de alimentos têm chance de tirar proveito.
"Algumas empresas do setor automotivo também podem ser beneficiadas caso consigam aumentar a eficiência e a competitividade", avalia Hiratuka. Desta forma, diz o pesquisador, elas teriam condições de elevar as exportações, não para a Europa, mas para outros mercados, como o próprio Mercosul.
Para Panzini, da CNI, a importação de insumos da Europa pode tornar a indústria mais competitiva e em condições de exportar para outros países.
"Outro ponto é que geralmente esses acordos de livre comércio estão associados a um aumento de investimentos diretos. Há uma expectativa de aumento de investimento europeu no país. Outro ponto: haverá mais acesso ao mercado europeu de compras públicas, que é muito grande. E alguns custos de serviços de exportação podem cair para a indústria", acrescenta o gerente da confederação.
O que pode dar errado?
Analistas alertam que os setores de maior complexidade tecnológica, que já vêm sofrendo nos últimos tempos, são os mais ameaçados pelo acordo.
"Quanto maior o conteúdo tecnológico dos produtos maior a vantagem competitiva europeia e daí o maior o risco de uma inibição do desenvolvimento desses produtos no país", assinala o economista Mauro Rochlin, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) e da PUC (Pontifícia Universidade Católica) no Rio.
Célio Hiratuka afirma que o Brasil deve perder força na indústria de bens de capital (máquinas e equipamentos), na indústria química, na farmacêutica e na automotiva.
"São setores com grande presença de empresas multinacionais, muitas delas europeias, e essas empresas podem diminuir o papel da filial brasileira". Uma consequência grave seria a redução dos empregos industriais no país.
"Quinze anos [de prazo para a redução das tarifas de importação de produtos europeus] não é pouco. Seria um prazo suficiente para a indústria nacional correr atrás e se equiparar aos parâmetros europeus. Meu medo é que isso não ocorra porque pode ser mais interessante para algumas empresas trocar a produção local pelas importações", avalia Mauro Rochlin.
"O pouco que resta da nossa indústria vai ser completamente aniquilado", prevê Feldmann, que compara as perspectivas do acordo com a abertura comercial promovida pelo governo Fernando Collor (1990-1992).
"O Collor resolveu abrir as importações de uma forma generalizada. Em pouquíssimo tempo, conseguimos quebrar o setor de brinquedos, o setor de roupas, o setor de calçados, o de computadores. Foram à ruína porque não conseguiram enfrentar, na época, o produto chinês."
Hiratuka frisa que o Brasil deveria articular políticas de apoio à indústria como as que existem em países avançados.
"Quando se faz críticas ao acordo Mercosul-União Europeia não é necessariamente ao fato de ter o acordo, mas ao fato de ele estar acontecendo sem que o país tenha uma estratégia clara de desenvolvimento produtivo e de inovação tecnológica. O problema é o contexto internacional onde o esforço de coordenar ações do setor privado com o apoio estatal tem acontecido fortemente. Então, entrar nesse jogo sem ter os instrumentos adequados e uma estratégia de coordenação é complicado."
Atraso e urgência
O que agrava a situação é que a indústria de transformação vem perdendo força dentro da economia brasileira há quase 30 anos. Em 2018, a participação do setor no PIB (Produto Interno Bruto) caiu para 11,3%, o nível mais baixo da série iniciada em 1947.
"A indústria brasileira está atravessando uma situação muito grave. O Brasil vive um momento de desindustrialização. Nossa indústria não é competitiva. O produto industrial brasileiro é, de uma forma geral, inferior ao europeu e mais caro", observa o professor Feldmann, que foi diretor da Microsoft e da Philips.
Além disso, países mais avançados vêm apostando nas tecnologias inovadoras da quarta revolução industrial como a inteligência artificial, a realidade aumentada e a impressão 3D.
Diante deste quadro, fortalecer a indústria no país seria um caso de urgência. "Não vai ser na última semana desses 15 anos [de prazo para a queda das tarifas de importação] que a gente vai ter que correr atrás. Os programas têm que começar agora", diz Mauro Rochlin.
"É possível fazer uma restruturação nos nossos parques industriais que tendem a ser mais prejudicados. Cabe ao governo agora traçar essas áreas mais estratégicas. Há soluções, há formas de a gente minimizar as perdas", aponta Juliano Cortinhas, professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB (Universidade de Brasília).
Mas por que salvar a indústria?
A indústria teve papel fundamental no crescimento econômico do Brasil ao longo do século 20 e continua a ser crucial em outros países. "Esse movimento de desindustrialização no Brasil é preocupante porque a indústria é um setor dinâmico, agrega muito valor, impulsiona o setor de serviços. O emprego no setor industrial é de melhor qualidade, o nível médio salarial é maior. Esse acordo acentua a nossa posição de fornecedor de produtos primários e de importador de produtos industriais de maior valor agregado", declara Rochlin.
O Brasil, ressalta o professor da FGV, não deve deixar de aproveitar as vantagens que possui nos setores de commodities, mas nações dependentes desses produtos ficam mais sujeitas a enfrentar crises porque seus preços apresentam oscilações maiores. Eles sobem e caem de acordo com o tamanho da oferta no mercado internacional.
Os preços dos produtos manufaturados, por sua vez, são menos voláteis, o que proporciona maior estabilidade aos países industrializados.
"O Brasil é cada vez mais um país exportador de commodities. Mas essa é uma situação com a qual não deveríamos nos conformar. Os países desenvolvidos têm grande capacidade industrial. Países que dão atenção apenas para o setor agrícola são, em geral, pobres, com nível de vida sofrível, renda per capita baixa", argumenta Feldmann.
"O agronegócio tem as próprias fronteiras de expansão, mas não diria que é através dessas fronteiras que a gente vai poder daqui a dez, 20, 30 anos ter uma participação mais relevante no comércio mundial nem no ranking das nações de maior PIB", analisa Rochlin.
O que fazer, então?
Uma série de medidas poderia tornar a indústria brasileira mais competitiva. Panzini, da CNI, cita, por exemplo, a reforma tributária, com simplificação da carga de impostos, e um programa de apoio aos setores mais afetados pelo acordo.
"Estados Unidos, Coreia do Sul, União Europeia, quando fazem acordos comerciais, têm programas de ajustes para empresas que são mais negativamente afetadas. Não é subsídio, não é dinheiro de governo. É trabalho de consultoria para aumentar a produtividade das empresas".
O gerente da confederação também defende medidas governamentais que desburocratizem e impulsionem o comércio exterior, mas admite que as indústrias precisam fazer uma "lição de casa": investir em inovação.
Juliano Cortinhas, da UNB, aponta outras medidas necessárias, como a melhora da infraestrutura de ferrovias, portos e rodovias, e políticas que incentivem a ciência e a tecnologia e aproximem as indústrias e as universidades. "É preciso planejamento, e isso ainda não tenho observado nas medidas do atual governo".
E o consumidor final?
No curto prazo, o acordo com a União Europeia será positivo para o consumidor brasileiro, na opinião dos analistas.
"A realidade para o consumidor será mais tentadora no primeiro momento porque ele terá uma gama de produtos muito maior, uma oferta muito mais ampla, e consequentemente preços mais baixos", diz Rochlin. O professor Hiratuka, da Unicamp, declara, porém, que os preços de produtos industriais de setores com menos concorrência tendem a não cair.
Em um prazo maior, no entanto, os ganhos com reduções de preços podem ser anulados para boa parte da população. "A gente teria uma redução da inflação, mas se houver realmente um cenário negativo para a indústria, com aumento do desemprego, os preços mais baixos nas prateleiras não significariam muito", ressalta Juliano Cortinhas, da UnB.
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