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Venderam casa para entrar em suposta pirâmide e sofrem na crise da covid-19

Lucas Gabriel Marins

Colaboração para o UOL, em Curitiba

17/04/2020 04h00

A Unick Forex, empresa gaúcha investigada por suspeita de ser uma pirâmide financeira, é acusada de ter captado de forma ilegal cerca de R$ 28 bilhões de 1,5 milhão de pessoas, segundo processo que corre na Justiça Federal. Boa parte desse montante bilionário saiu das contas bancárias de pessoas simples e com pouco conhecimento do mercado financeiro. No meio da pandemia do coronavírus, o dinheiro perdido por eles faz ainda mais falta, principalmente para aqueles que não têm mais renda.

O UOL conversou com três investidores que se dizem lesados pelo negócio. Eles fazem parte da ADDI (Associação em Defesa dos Direitos dos Investidores da Unick Forex). Conheça abaixo as histórias deles. Contatado, o escritório Nelson Wilians e Advogados Associados, que defende a empresa e alguns de seus membros, não quis comentar a reportagem.

Casal vendeu a casa para investir e foi viver de aluguel

No início de 2019, o marido de Letícia Ferreira, 39, que pediu para não ter o nome revelado, investiu R$ 7.000 na Unick Forex, depois de ter sido convencido a entrar no negócio por um amigo de infância dele, conta ela. Ao longo de seis meses, o casal de Cachoeirinha (RS) recebeu parcelas mensais de R$ 2.400.

Ficamos tão empolgados com o resultado positivo que vendemos nossa casa por R$ 130 mil, investimos cerca de R$ 57 mil na empresa e fomos morar de aluguel. Pelas nossas contas, iríamos receber cerca de R$ 15 mil ao longo de seis meses.
Letícia Ferreira, motorista de aplicativo

A empresa não pagou. O dinheiro que havia sobrado da venda da casa foi gasto para pagar contas. Sem condições de arcar com o apartamento alugado, que tinha custo de R$ 2.000 mensais, Letícia começou a trabalhar como motorista de aplicativo. O salário do marido, que é ajudante de transportadora, não era suficiente para pagar o aluguel. Ele também começou a dirigir nas horas vagas.

Os gastos ficaram muito altos. A reserva que havia sobrado da venda da casa foi totalmente usada. Letícia e o marido, disse ela, tiveram que entregar o imóvel, após pagarem uma multa de R$ 3.700 pela quebra de contrato. Alugaram outro local por R$ 700.

Em fevereiro deste ano, Letícia disse que faturava cerca de R$ 300 por dia e, contando com o dinheiro do marido, conseguia arcar com os gastos. Hoje, por causa da pandemia do coronavírus, ela só faz R$ 75 por dia, trabalhando 10 horas diariamente, de domingo a domingo.

Diabética, ela disse que entende que faz parte do grupo de risco do vírus, mas falou que não tem condições de ficar parada em casa.

Eu tenho medo da pandemia, e me cuido bastante, mas não posso me dar ao luxo de parar de trabalhar, pois tenho contas para pagar.
Letícia Ferreira

Letícia disse que, se não tivesse investido na Unick Forex junto com o marido, talvez a vida a dois não tivesse virado o caos que foi nos últimos meses. "Além de todo perrengue financeiro, tive depressão, síndrome do pânico, fibromialgia, e há dias em que nem consigo caminhar", disse.

Renda zero, com luz, água e aluguel atrasados

A ambulante Laura Goes, 58, ganhou de presente de uma das três filhas um pacote de investimento de quase R$ 1.000 da Unick Forex. O valor, disse à reportagem, pode até ser baixo quando comparado ao que foi perdido pelas outras vítimas da empresa, mas faz muita falta.

Isso porque estou totalmente sem renda. A feirinha da Concórdia (SP), onde tenho uma barraca que vende blusinhas no inverno e roupa de praia no verão, está fechada desde a metade do mês passado [março] por causa da pandemia.
Laura Goes, ambulante

Sem salário, a luz, a água e o aluguel estão atrasados. Ela mora em uma casa de dois cômodos, na Vila Guilhermina (SP), com suas duas filhas, uma de 16 e outra de 32 anos; a mais velha tem deficiência cognitiva. Além disso, 12 gatinhos também integram a família.

Laura disse que, no final de março, foi ao mercado e estourou o cartão de crédito comprando comida para as filhas.

Entre ter o nome sujo na praça e botar alimento dentro de casa, fico com a segunda opção. O problema é que, acabando o que tem aqui, não tenho mais como comprar nada.
Laura Goes

Para conseguir comida para os bichos de estimação, todos resgatados da rua, Laura disse que começou a visitar açougues da zona leste de São Paulo. Ao chegar aos locais, falou, pede restos de frango para seus gatinhos. Ela falou que precisa muito de doações.

"A situação está difícil, mas procuro viver um dia de cada vez. Ansiedade exagerada só dá enxaqueca e não faz o dinheiro aparecer. Tudo está nas mãos de Deus", disse.

Enquanto falava com a reportagem, Laura tentava fazer o download do aplicativo da Caixa Auxilio Emergencial, que permite solicitar os R$ 600 oferecidos pelo governo.

Investiu R$ 8.000 da rescisão; não consegue novo emprego

Alcindo Herpich, 50, de Novo Hamburgo (RS), ouviu falar sobre a Unick Forex no Réveillon de 2018. Na época, conta, ele não deu muita bola para o negócio, pois a promessa feita pela empresa, de dobrar o capital investido em seis meses, parecia um tanto surreal. Mesmo assim, resolveu visitar a sede do negócio, que ficava na cidade onde vive —a sede depois foi transferida para São Leopoldo (RS).

Quando cheguei lá, fiquei impressionado com a estrutura deles. Naquele mesmo período, também dei uma estudada sobre bitcoins e vi que valorizam bastante de um dia para o outro. Pensei, então, que receber um lucro de 1,5% a 2% por dia talvez pudesse ser uma nova tendência do mercado financeiro.
Alcindo Herpich

Em fevereiro de 2019, Herpich investiu R$ 600 na Unick Forex. Após seis meses, disse, recebeu R$ 1.200. No meio do ano passado, foi demitido dos dois restaurantes onde trabalhava como garçom e supervisor de almoxarifado e usou cerca de R$ 8.000 da rescisão para investir novamente.

"Pensei que, ao aplicar esse novo valor, poderia ter uma folga maior para procurar um trabalho", disse.

Herpich não conseguiu recuperar nada do investimento. O novo emprego com carteira assinada também não apareceu. Desde então, ele disse que vem fazendo extras em restaurantes. Por causa da pandemia, no entanto, os estabelecimentos fecharam e ele já não tem mais de onde tirar renda.

"Fiz umas contas e cheguei à conclusão de que, contando com o coronavoucher prometido pelo governo, consigo sobreviver mais alguns meses. Em junho, no entanto, vou estar com cartões bloqueados, sem luz, aluguel atrasado e, provavelmente, com uma dívida de R$ 5.000. Se eu conseguisse reaver pelo menos esse valor, meu problema já estaria resolvido", disse.

Apesar do aperto financeiro, Herpich falou que prefere parar agora do que ter problemas de saúde no futuro. "Acredito que, quanto mais cedo a gente deixar de circular, mais rápido a gente acaba com a transmissão do vírus e mais cedo poderemos voltar à normalidade".

Suposta pirâmide foi desmantelada pela PF

A Unick Forex prometia rendimentos de até 3% ao dia em cima sobre o capital aportado. Esses lucros seriam obtidos por meio de investimentos no mercado Forex (foreign exchange) e em criptomoedas.

A empresa nunca teve autorização da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) para ofertar investimentos. No final do ano passado, a Polícia Federal, no âmbito da Operação Lamanai, desmantelou o suposto esquema de pirâmide financeira e prendeu os integrantes do grupo.