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País não tem presidente e devia emitir moeda na crise, diz Bresser-Pereira

Professor e economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, em seu escritório, em 2017 - Keiny Andrade/UOL
Professor e economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, em seu escritório, em 2017 Imagem: Keiny Andrade/UOL

Ricardo Marchesan

Do UOL, em São Paulo

19/04/2020 04h00

Emitir moeda sempre foi algo muito criticado por grande parte dos economistas, principalmente em um país como o Brasil, que tem um passado recente de inflação muito alta. Diante da atual crise causada pela pandemia de coronavírus, muitos passaram a apontar essa medida como uma solução a ser considerada em um cenário tão adverso.

Para o ex-ministro e professor da FGV Luiz Carlos Bresser-Pereira, a emissão de moeda é uma "solução óbvia" e, se for bem controlada e com um objetivo claro, não causa inflação, e o dinheiro pode ser usado nos gastos de combate à pandemia de coronavírus, tanto na saúde, quanto na economia, com o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600, por exemplo.

Não se trata, literalmente, de imprimir dinheiro. Bresser-Pereira defende que isso seja feito por meio da compra de títulos públicos pelo Banco Central, algo que está em discussão por meio da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do orçamento de guerra, que está no Congresso.

"Se o Tesouro passa a dever para o Banco Central, e o Tesouro e o Banco Central são dois órgãos do Estado, é claro que não houve nenhum aumento da dívida do Estado, só uma mudança de quem é credor internamente. Você pode dizer que isso é uma emissão de moeda", afirma.

O ex-ministro também criticou a atuação da equipe econômica na atual crise e o comando do presidente Jair Bolsonaro (sem partido): "Não existe um governo federal, na prática. Mais precisamente, nós não temos um presidente".

Confira os principais trechos da entrevista de Luiz Carlos Bresser-Pereira ao UOL.

UOL: Qual a avaliação que o senhor faz dessa crise econômica atual? Ela tem precedente na história?
Luiz Carlos Bresser-Pereira
: É a maior crise econômica que o mundo tem desde 1929. É uma crise econômica sem precedentes, porque não é uma crise financeira. É uma crise que vem de um vírus, é um problema sanitário. Claro que já houve crises sanitárias antes. Uma muito grave foi a da gripe espanhola (1918). Mas não houve uma reação econômica muito clara.

Agora, como esta crise está envolvendo a paralisação de muitas lojas e muitas fábricas, devido à necessidade de distanciamento social ou de isolamento, as consequências em termos de queda da oferta e queda do PIB, portanto, recessão, são muito grandes.

Por não ser uma crise financeira na origem, mas social e sanitária, qual é a possibilidade de que medidas econômicas tenham um impacto significativo?
Quando você tem uma crise como a de 2008, por exemplo, a solução óbvia do ponto de vista econômico, e que foi adequada, foi uma solução keynesiana contracíclica. Todos os Estados fizeram enormes gastos em 2009, isso segurou a demanda e a economia foi saindo da crise.

Agora não é esse o problema. Não adianta simplesmente, diante dessa crise, começar a aumentar gastos em infraestrutura, por exemplo. Ainda que sejam muito necessários para o país, mas isso é uma outra história.

O problema que você tem é, de um lado, aumentar o gasto na própria saúde. Isso é um peso relativamente grande. Agora, o maior gasto é que o governo precisa subsidiar as famílias. Não só as famílias mais pobres, que são as prioritárias, com um sistema de renda mínima, mas também as famílias de classe média que estão desempregadas.

Por outro lado, você precisa subsidiar as empresas, seja em compensação para elas não demitirem funcionários, seja para, se demitirem porque não há nenhuma produção, dar crédito e algum apoio.

Isso é o que está sendo feito em todo o mundo. Está sendo feito também no Brasil.

As medidas que o governo tomou, como o auxílio emergencial de R$ 600 e a possibilidade de redução de jornadas de trabalho e salário, vão nesse sentido?
Elas caminham nessa direção, mas são medidas que estão sendo tomadas basicamente pelo Congresso Nacional.

Sempre se espera, é o que está acontecendo nos outros países, que quem tome a iniciativa é o Poder Executivo. Pedindo, claro, a colaboração do Congresso nas medidas que propõe.

Mas não é isso que está acontecendo, porque não existe um governo federal, na prática. Mais precisamente, nós não temos um presidente.

Temos um governo em que o ministro da Economia (Paulo Guedes) está perplexo, porque toda a sua administração estava montada na ideia de um ajuste neoliberal radical, que não estava dando certo, mas era isso que ele estava fazendo. De repente ele vai ter que gastar muito dinheiro. Até ele se dar conta disso e se ajustar a essa ideia, está difícil.

De forma que o (presidente da Câmara) Rodrigo Maia (DEM-RJ) e os congressistas de um modo geral novamente se anteciparam. Ainda bem. Essa história de que os políticos brasileiros são todos ruins é falsa. Ficou mais uma vez provado agora.

Então sua avaliação é que a atuação da equipe econômica até o momento é fraca?
É muito fraca. Quem atuou fortemente, como eu disse, foi o Rodrigo Maia, foram os deputados, foram os senadores. Eles que estão comandando essas medidas. Claro que o Ministério da Economia também está participando, mas muito pouco, muito insatisfatoriamente, a meu ver.

O Senado está votando o que ficou conhecida como PEC do Orçamento de Guerra. Da forma como está sendo desenhada, ela caminha em uma direção correta?
Ela caminha na direção absolutamente correta. Essa é outra atividade que foi totalmente do Congresso. A coisa mais importante nessa PEC é dar a possibilidade ao Banco Central de comprar títulos do tesouro e títulos das empresas. Isso é fundamental para manter a liquidez no sistema.

O Banco Central já está fazendo compras, principalmente de títulos de banco. Ele tem uma certa liberdade para isso. Mas a PEC agora dá mais autonomia para o Banco Central agir nessa área.

Isso é muito importante, porque em uma crise como essa a queda da liquidez é enorme e isso provoca um aumento da taxa de juros grande se o Banco Central não agir muito fortemente nessa área. Isso envolve principalmente crédito das empresas privadas.

Há outro aspecto para mim, que também é absolutamente fundamental e mais heterodoxo, que é o financiamento do Estado. É fazer o que foi feito no 'quantitative easing', pelo Japão, pelos Estados Unidos, pela Inglaterra, e finalmente pela Europa. E continuam fazendo agora.

O 'quantitative easing' é uma política de compra de títulos, do governo ou privados, pelo Banco Central para estimular a redução da taxa de juros e aumentar a oferta de moeda no mercado.

Ele envolvia fundamentalmente a compra de dois tipos de títulos: privados e públicos. Quando você compra o título público, pode comprar o que já está no mercado, isso implica uma redução da dívida pública. É uma redução que, "curiosamente", não é lançada na contabilidade pública, de forma que não mexe nela.

É claro que, se o Tesouro passa a dever para o Banco Central, e o Tesouro e o Banco Central são dois órgãos do Estado, é claro que não houve nenhum aumento da dívida do Estado, só uma mudança de quem é credor internamente. Você pode dizer que isso é uma emissão de moeda.

Isso foi feito em grande quantidade, sem nenhum efeito inflacionário, confirmando toda a teoria keynesiana, especialmente a teoria da inflação inercial, que eu ajudei a desenvolver no começo dos anos 1980.

Ela diz que a moeda não é um fator causador da inflação. O fator acelerador, normalmente, é o excesso de demanda. Mas também pode ser um choque de oferta de vários tipos. O fator mantenedor é a inércia inflacionária, ou seja, a indexação formal e informal da economia. Informal é que as pessoas passam a aumentar seus preços automaticamente de acordo com a inflação, havendo ou não demanda. Isso é inflação inercial, o fator mantenedor.

O 'quantitative easing' seria uma emissão de moeda, então?
O 'quantitative easing', quando se trata de compra de títulos do Tesouro, é emissão de moeda. Quando é a compra de títulos privados, não é emissão de moeda, é simplesmente aumento da liquidez. No caso do título público é aumento da liquidez e é também emissão de moeda.

Essa emissão de moeda pode ser feita ou comprando títulos já existentes, que simplesmente aumentam a quantidade de moeda e reduzem a dívida pública, ou então pode ser, que é o que importa agora, a emissão de moeda que não aumenta a dívida pública.

Se o Banco Central for autorizado a gastar determinada soma de dinheiro para financiar esses gastos imensos que estão sendo necessários para socorrer os estados, pagar a renda básica de R$ 600, socorrer as empresas, essas despesas podem ser financiadas por esses títulos. Não vão causar inflação e, no final do período, não vai aumentar brutalmente a dívida pública. O que é muito importante, porque a dívida pública brasileira já é muito alta, não há nenhuma razão para aumentá-la.

Isso é uma coisa que os economistas têm dificuldade em entender porque há um monetarismo entranhado neles. Eles acham que inflação é aumento da quantidade de moeda, o que é uma bobagem. É a chamada teoria quantitativa da moeda. Isso é falso teoricamente, já foi demonstrado isso, e isso é falso empiricamente. Os bancos centrais não seguem isso em hipóteses alguma, porque os economistas dos bancos centrais são bem melhores do que os economistas ortodoxos que se formam nas universidades (rindo).

Na semana passada o secretário de Fazenda e Planejamento de São Paulo, Henrique Meirelles, também falou em uma entrevista em emissão de moeda para combater a crise, e que isso não geraria inflação.
Exatamente. Porque realmente é uma solução óbvia.

Há dois argumentos em relação ao título público. Um é esse argumento de que não aumenta a dívida pública, e o outro, que é correlacionado, é que isso tira medo do legislador, tira medo do (ministro da economia, Paulo) Guedes, de gastar o dinheiro.

É preciso gastar o dinheiro para enfrentar essa crise e diminuí-la no plano econômico, porque essa crise vai ser muito grande.

O FMI fez uma previsão de queda do PIB de 5% no Brasil neste ano. Eu acho que é otimista. Se o Estado não fizer grandes gastos agora, vai ser mais do que 5%. Se tiver bastante gasto, pode ser que seja menos que 5% —mas vai ser negativa de qualquer jeito.

O governo começou a pagar o auxílio emergencial, que está previsto para durar três meses, mas há economistas defendendo que terá de ser estendido por mais tempo. O senhor concorda?
Eu acho que sim. A gente não sabe exatamente o quanto, porque o que se prevê é que vai haver processos de aumento e diminuição do distanciamento. Abrir e fechar as lojas. Abrir as escolas e depois fechar. Esse tipo de coisa vai acontecer porque o vírus deve durar pelo menos um ano. A Universidade de Harvard previu que vai durar dois anos. A não ser que surja uma vacina antes. Se surgir uma vacina ou um remédio que seja realmente efetivo, então o tempo vai ser menor. Mas dificilmente será menos do que um ano e, portanto, a gente não sabe.

A China já voltou à atividade. Não totalmente, mas já voltou à atividade. A China e a Coreia do Sul, que foram os países mais bem sucedidos. Em maio, alguns países europeus, como a Itália, França, Portugal, devem estar recomeçando a atividade. Agora, quanto tempo vão permanecer ativos? Quando vão voltar a fechar? Não sei. Por isso ninguém sabe quanto vai ser o custo dessa crise.

O senhor acredita que essa crise abra caminho para a discussão de políticas sociais mais amplas e profundas de apoio à população mais pobre, como a renda básica que o senhor mencionou, no Brasil e no mundo?
Isso vai acontecer. Isso está sendo muito discutido nos Estados Unidos, porque o fato de os Estados Unidos não terem um sistema universal de saúde é muito significativo.

Enquanto os europeus e o Brasil têm. O Brasil é bem mais pobre, evidentemente, por causa da nossa renda per capita muito mais baixa. Mas, de qualquer forma, tendo um sistema universal de saúde, você tem a possibilidade de fazer uma política coordenada para enfrentar o problema do vírus. Os americanos não têm isso. Isso está sendo muito discutido lá.

A gente está vivendo um momento de volatilidade no câmbio, mas já vinha de um movimento de alta mesmo antes da pandemia no Brasil. É possível dizer que o câmbio acima de R$ 5 vá durar muito tempo ainda?
Eu acho que vai durar, sim. Porque a economia brasileira, mesmo sem esse vírus, já estava em crise. Não retomava o crescimento e, portanto, a taxa de câmbio estava muito alta. E isso se agravou agora com a covid-19. Nessas crises, é sempre o dólar que se fortalece.

Agora, no caso brasileiro, o Estado precisa tomar cuidado para aguentar uma crise financeira externa. Porque o déficit em conta-corrente no ano passado foi muito grande, e parecia que seria maior neste ano. Agora parece que não vai ser. E as remessas de lucros, juros e dividendos são imensas. Houve um aumento brutal delas nos últimos quinze anos. Uma coisa impressionante. De forma que, apesar de o Brasil ter reservas muito grandes, felizmente, o Brasil precisa tomar cuidado para manter o seu crédito internacional e tratar de reduzir seu déficit em conta-corrente, que seria uma prioridade de médio prazo muito importante.

Então o senhor é contra usar as reservas internacionais para combater a crise atual?
Reservas internacionais não podem ser usadas. De jeito nenhum. O governo, o Banco Central, está usando um pouco, mas isso está certo, porque ele tem que segurar o excesso de aumento de dólares. As reservas servem para ele vender um pouco, isso está ok. Mas essa história de usar reservas para financiar gastos do governo, não.