Economista da OCDE: "O que impacta economia é a pandemia, não isolamento"
O mundo tenta encontrar um equilíbrio entre as medidas necessárias para salvar vidas da covid-19 e a preservação empregos e empresas, atingidos em cheio pela pandemia. Mas para Frederico Guanais, chefe-adjunto do departamento de Saúde da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), o dilema entre vidas e empregos é falso: ele afirma que, se os países nada fizessem para diminuir os contágios pelo coronavírus, as consequências econômicas seriam ainda mais dramáticas. Confira a entrevista:
RFI: Temos visto que, apesar da emergência sanitária, as medidas de isolamento e quarentena da população esbarram em limites, tanto econômicos quanto de apoio da própria população, em algumas situações. Se já é difícil para um país rico como a França manter o confinamento, é ainda mais duro para os países em desenvolvimento, como o Brasil. A questão é: poder fazer quarentena é um luxo de quem pode pagá-la?
Frederico Guanais: Essa é uma excelente pergunta. Com certeza as medidas de isolamento e quarentena implicam em redução da atividade econômica, com fortes perdas para os trabalhadores e as empresas. Mas eu penso que o dilema entre economia e saúde é falso. Para proteger a economia, é necessário controlar a disseminação do vírus. Sem controle, as perdas humanas, sociais e econômicas da pandemia são enormes. Em última análise, o que impacta a economia é a pandemia, e não as medidas para controlar o vírus.
Naturalmente, os países mais ricos estão em melhores condições de implantar medidas de isolamento e quarentena, mas isso não significa que os outros países não devam buscar o melhor caminho para fazê-lo. Primeiro, protegendo as pessoas e setores da economia mais vulneráveis e afetados. Essas devem ser a prioridade do apoio governamental. Depois, preparar o sistema de saúde e mobilizar as fortalezas que cada país tem.
O Brasil é um país em desenvolvimento, mas é um país de renda média, que conta com um sistema de saúde universal, com todos os problemas que possa ter o SUS. Conta com programas de proteção social, com cadastro da população mais pobre. Ou seja, com elementos para poder alavancar essas medidas e poder fazer de uma forma que proteja a sua população, ao mesmo tempo em que busca protege os danos e impactos à sua economia.
RFI: Que país com desenvolvimento e economia semelhantes ao Brasil está conseguindo implementar medidas mais equilibradas entre a proteção tanto da economia quanto da população?
Mesmo no Brasil, existem várias políticas públicas muito importantes, como as de proteção dos trabalhadores informais e para potencializar o sistema de saúde. O Brasil, por ser um sistema federativo descentralizado, apresenta muita variação entre as medidas que foram implementadas em nível estadual. Acho que a melhor comparação está dentro do próprio Brasil: avaliar como, dentro dos Estados, isso está acontecendo e que resultados eles estão obtendo com essas medidas. Na América Latina, tem outros países que têm adotado medidas fortes, como a Colômbia, a Argentina, o Chile e o Peru, dentro das suas possibilidades. São países enfrentando desafios similares, que poderiam aprender uns com os outros.
RFI: Adianta só uma parte da população estar confinada, enquanto a outra trabalha normalmente, ou quase?
É uma questão interessante, porque a imunidade parcial pode ser arriscada, por criar um grupo de pessoas que não foi exposto ao vírus, e um segundo grupo no qual o vírus circula mais amplamente. Você preserva uma população que, em algum momento, quando entrar em contato com essa outra população, é como se fosse uma população nova, um vírus novo. Então, é importante ter um conjunto de medidas: nenhuma única ação é 100% eficaz. A literatura mostra o quanto é importante combinar medidas, como o trabalho remoto quando é possível, mudanças para reconfigurar os ambientes de negócios e trabalho, o uso de máscaras e álcool em gel em locais públicos e nos transportes etc.
RFI: Essas medidas que você citou estão sendo adotadas em países como a França, que começam a promover o abrandamento da quarentena. Como você recomenda que esse passo, tão importante quanto arriscado, seja dado?
A decisão pelo abrandamento deve estar baseada em dados como o número de novos casos e a capacidade disponível no sistema de saúde. É isso que vai determinar a margem de manobra que as autoridades têm para aplicar medidas de abrandamento. Junto com isso, é fundamental usar ferramentas conhecidas há muitos anos da saúde pública: localizar todos os sintomáticos, testar essas pessoas e rastrear os seus contatos. É uma ferramenta básica já usada para controlar tuberculose, ebola e várias outras doenças contagiosas.
O que tem de novo agora são as ferramentas digitais que podem fazer com que esse processo seja acelerado. Mas eu não acho que existam ferramentas mágicas. Eu diria que é uma combinação entre soluções tecnológicas com o trabalho de profissionais de saúde, como agentes comunitários, médicos de atenção primária, enfermeiros. Esses profissionais da linha de frente podem ajudar nesse processo.
RFI: Muito tem se falado sobre o conceito de stop and go, ou seja, liberar a quarentena por um período e, se a tensão nos hospitais voltar a aumentar, impor novamente a quarentena. Temos de nos acostumar a essa ideia? Por quanto tempo ainda?
Sem dúvida, essa é uma ideia com a qual teremos de nos acostumar, pelo menos até que aconteça uma de duas coisas: ou que a imunidade de rebanho seja alcançada, ou que uma vacina ou tratamento estejam disponíveis em grande escala. Apostar na primeira opção, a imunidade de rebanho, é muito arriscado. Implicaria em aceitar um número muito grande de mortes até que pelo menos 60 ou 70% da população esteja infectada. Isso significa aceitar centenas de milhares de mortes, em um país como o Brasil.
Além disso, restam muitas certezas, como por exemplo, quanto tempo essa imunidade dura? Será que todas as pessoas infectadas realmente estarão imunes? Existe uma alta probabilidade que sim, mas não temos certeza. Os estudos epidemiológicos mostram que uma proporção pequena da população já foi infectada pelo vírus - menos de 10% nos países europeus. Ou seja, para chegar a esses 60 ou 70%, ainda estamos muito longe. Portanto, a melhor aposta é a segunda, que as sociedades estejam preparadas para conter essa infecção, com as medidas de mitigação, até que uma vacina ou um tratamento estejam disponíveis. O consenso científico é de que isso vai levar entre 12 e 18 meses. Esperamos que no ano que vem já esteja disponível.
Quanto aos tratamentos, os eficazes estão sendo buscados pela reaplicação de drogas que já existem. Mas, por enquanto, não há nenhuma bola mágica nesse sentido. A evidência científica é implacável e, sem ela, a gente não pode garantir que o tratamento vai funcionar ou que possa causar danos aos pacientes.
RFI: O temor de segunda onda de contágios, tão grave quanto a primeira, não tem se confirmado nos países asiáticos onde a pandemia se iniciou. É uma boa notícia? Ou ainda é cedo para avaliar?
Infelizmente, eu acho que ainda é cedo para avaliar. Esporadicamente, surgem novos casos e pequenos focos nos países asiáticos. Mas é importante ressaltar que esses casos de países que tiveram sucesso em controlar a pandemia adotaram medidas muito importantes, muito fortes, além das medidas de confinamento e restrição de circulação.
Eu queria destacar de novo a estratégia de testes. Por que a Coreia do Sul conseguiu controlar as infecções num período rápido e com um número relativamente pequeno de testes? Porque eles foram rápidos. Não basta só ter um número x de testes feitos, mas é importante o quão rápido você consegue chegar às pessoas infectadas. A Coreia, desde o início, já estava preparada, escorada na experiência de pandemias anteriores, e foi capaz de, muito rapidamente, produzir esses testes, distribuir kits, implementar sistemas de drive-thru, identificar quem são os infectados, chegar até eles, colocá-los em quarentena e a partir daí, limitar o contágio.
E esses países não baixaram a guarda. Eles continuam com essas ferramentas de saúde pública para poder conseguir suprimir novos focos da epidemia, em um momento muito precoce. Acho que deveríamos manter isso em perspectiva também para outros países.
RFI: No Brasil, a postura reiterada do governo Jair Bolsonaro, de minimizar a pandemia, vai de encontro a todas as recomendações internacionais para conter a covid-19. O Brasil tem a ambição de fazer parte da organização. Existe alguma orientação da OCDE sobre como os países membros devem atuar?
A OCDE é uma organização de governos que trocam as melhores experiências e as melhores evidências de políticas públicas para obter os melhores resultados; para melhorar vidas. O Brasil já faz parte de vários comitês da OCDE, participa de reuniões do comitê de saúde da OCDE, ou seja, o Brasil está exposto a esse trabalho técnico desenvolvido por aqui. O papel da OCDE não é de aplicar sanções aos países: é produzir evidências e, a partir do debate, do conhecimento técnico, produzir caminhos de melhores políticas públicas.
Eu acho que é importante, dentro do Brasil, aprender o que está funcionando dentro do contexto local. No sistema federal, existe uma descentralização de responsabilidades. O diálogo internacional é muito importante, aprender com os erros e os acertos dos outros países, mas também é essencial reconhecer quando as políticas públicas estão funcionando ou não. Estar atento aos dados, e o Brasil produz muitos dados, é muito importante para ir calibrando as respostas para buscar um sistema de saúde cada vez mais forte. A saúde não é um gasto: é um investimento.
Nós, economistas de saúde, já tratamos disso há muito tempo. Pense nos enormes custos que poderiam ser evitados se os sistemas de saúde estivessem prontos para, em grande escala, fazer testes, internar as pessoas que precisassem, resolver a maioria dos casos sem precisar ir ao hospital. E todas as pessoas que têm câncer e outras doenças, como cardíacas, que não desapareceram e precisam continuar seus tratamentos? Se conseguíssemos tratar esses casos fora dos hospitais, com um sistema de atenção primária forte, os hospitais conseguiriam receber os pacientes de casos críticos e agudos.
RFI: Você acha que essa pandemia vai provocar mudanças significativas nas políticas de saúde dos países? Que aprendizados ela nos traz?
Fica claríssimo que a saúde não é um gasto. Se tem alguma positiva em tudo isso é que muitas transformações no sistema de saúde se aceleraram, como o uso da telemedicina para a consulta primária. Vários países, durante muitos anos, tinham restrições fortes a pagar consultas por vídeo, ou os próprios médicos tinham resistências. Nos últimos meses, provavelmente aceleramos uma década nas transformações da telemedicina.
A grande questão é se algumas dessas transformações se tornarão permanentes ou serão apenas temporárias. Buscamos documentar todas as coisas interessantes que estão acontecendo para criar sistemas de saúde cada vez mais resilientes, ou seja, que sejam capazes de absorver um choque sem quebrar - os choques atuais e os futuros.
O fato que a gente supere agora a covid-19 não significa que no futuro não virá um outro vírus, uma gripe, ou outra variedade coronavírus. Os sistemas de saúde precisam estar preparados. Se, no passado, tivéssemos desenvolvido uma vacina para o Sars, em 2003, hoje teria sido muito mais fácil para adaptá-la à Covid-19.
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