Coronavírus expôs falha do capitalismo e acelerará mudanças, diz economista
A pandemia do novo coronavírus expôs o sistema capitalista a um "enorme choque" e revelou fragilidades ligadas a desigualdades sociais. Esta é a opinião de Branko Milanovic, economista sérvio-norte-americano e professor da Universidade da Cidade de Nova York.
"Está claro até agora que as estruturas foram construídas com o pressuposto de que tudo aconteceria como foi originalmente planejado. Isso significa que elas foram construídas de forma bem eficiente, contanto que não houvesse grandes choques. E o que a pandemia fez foi produzir um enorme choque", explicou Milanovic no programa Roda Viva, da TV Cultura.
"Quando você tem um grande choque e um sistema projetado sem levar em conta esse choque, isso realmente é um problema, e foi o que vimos agora. Várias partes das cadeias globais de valor não conseguem entregar o produto, e isso tem um efeito externo sobre o resto da cadeia", complementou o economista, que é ex-professor de instituições como as universidades de Maryland, Johns Hopkins e London School of Economics.
Quanto ao futuro, Branko opinou que os efeitos pós-pandêmicos do coronavírus podem elevar o grau de importância do Estado em cada país e afetar a globalização e, eventualmente, seriam capazes de mudar as próprias estruturas do sistema capitalista em si.
"Acho que o papel do Estado será mais importante dentro dos países e acho que isso atrapalhará a globalização da forma como a conhecemos nos últimos 30 anos. (...) Nesse caso, um dos componentes-chaves da nossa definição de capitalismo pode mudar, então, nesse sentido, existe a possibilidade de que no futuro vejamos algo diferente do capitalismo", disse.
EUA x China
Além de ser a causa principal de potenciais mudanças, a covid-19 também pode acelerar estes processos. MIlanovic admitiu que ainda não é possível ter certeza sobre estas previsões, mas disse que prevê panoramas "muito menos otimistas" para o futuro. Ele mencionou dois tipos distintos de capitalismo: o "tradicional", representado pelos EUA, e o "político", pela China.
"Em ambos os sistemas vemos a tendência da elite econômica e política de concentrar poder político e econômico e criar uma plutocracia capitalista 'de fato', ou solapar o poder da democracia do tipo 'um voto por pessoa'. A covid pode acelerar isso? É possível. Não tenho certeza se já chegamos lá, mas, em muitos aspectos, a covid tem um papel acelerador. Em outras palavras, certos desdobramentos que já existiam foram acelerados", comentou.
"Parte disso se deve à forma como a pandemia começou, na China, e parte porque a pandemia trouxe à tona as diferenças nas reações na China e nos EUA. A China, naturalmente, é o país onde a pandemia começou, e a reação das autoridades não foram nada boas, pois demoraram para entender que havia o perigo de uma epidemia e foram muito lentos em comunicar à autoridade central o que ocorria em Wuhan. Por outro lado, eles fizeram um excelente trabalho em conter a epidemia. Se vê a vantagem de um sistema mais centralizado e estatizado, que foi capaz de isolar Wuhan e mais recentemente Pequim", argumentou.
"Mesmo se não aceitarmos totalmente os números [de mortes e casos] chineses, não resta dúvida de que são uma fração das vítimas dos EUA. Nos EUA, foi péssimo o gerenciamento da pandemia e isso é algo que, provavelmente, estudaremos ainda por anos, pois é absolutamente surpreendente que um país que gasta a quantia mais alta com a saúde, especificamente dez mil dólares anuais per capita com saúde, seja incapaz de conter a pandemia", acrescentou Milanovic.
"Isso faz surgirem muitas perguntas sobre o modo como o capitalismo liberal meritocrático funciona ao lidar com uma crise. Pode-se imaginar como seria se os EUA tivessem de enfrentar uma crise como a de guerra: como eles reagiriam? A julgar pelo modo que agiram com a pandemia, provavelmente entrariam em colapso. Portanto, isso mostra muita falta de organização em certo sentido", completou o especialista.
"Quase um sistema feudal"
A principal "falha geológica", citada por Branko na entrevista, teve os Estados Unidos como exemplo, mas, em tese, também pode se aplicar ao Brasil. Estabelecendo até uma comparação com o sistema feudal, ele lamentou pelo "enorme nível de desigualdade" existente no fato de que algumas classes produtivas não podem se abster do trabalho — ou, pelo menos, trabalhar de casa — para se proteger da pandemia.
"As falhas e a divisão dos diferentes tipos de trabalho. Muitos de nós temos a sorte de poder trabalhar remotamente, temos a sorte de não correr o risco de nos infectarmos diariamente. Mas muitas pessoas, os trabalhadores essenciais, recebem menos e encaram a pandemia todo dia. Há um enorme nível de desigualdade nisso. Quase lembra um tipo do sistema feudal, no qual as pessoas com menor renda trabalhavam nas ocupações mais perigosas", alertou.
"A pandemia revelou uma enorme diferença entre tipos de trabalho e expôs essa desigualdade explícita. Seu sucesso e sua renda não são baseados em suas realizações individuais, mas sim em você conseguir arrumar um emprego que permita não ter que enfrentar diariamente o perigo da pandemia. E esse emprego pode resultar de você ter ido a boas escolas. Resultou de ter pais ricos, então, basicamente, voltamos ao berço da pessoa, e não aos esforços", disse.
Brasil deveria tributar a riqueza durante pandemia
Branko Milanovic ofereceu um ponto de vista duro sobre a situação do Brasil no combate à crise econômica e ao próprio coronavírus em si: ele disse acreditar na necessidade de "tributar a riqueza" durante o período da pandemia, para que mais vidas sejam salvas — algo que, como consequência natural, protegeria a economia em um pensamento de longo prazo.
"Novas formas de tributação precisam ser encontradas pois estamos em emergência, quase em guerra. Se você pretende vencer ou sobreviver, precisa colocar qualquer outra consideração em segundo plano, a principal precisa ser salvar vidas e tornar uma prioridade que a economia continue existindo. (...) Tributar a riqueza em caráter temporário, dizendo que a tributação vigorará enquanto durar a pandemia, acho que faz muito sentido", opinou.
Ele acredita que o caso do Brasil, cuja população parece ter voltado a ter percepções sobre desigualdade nos últimos anos, se tornou emblemático desde a crise econômica de 2008. Embora o país tenha sido menos afetado do que outros por aquela recessão, houve diminuição de crescimento.
"O Brasil, nesse sentido, estava na vanguarda do desenvolvimento. O motivo pelo qual a desigualdade se tornou relevante tem a ver, na minha opinião, com a crise de 2008, porque o que aconteceu foi que vocês tiveram uma espécie de parada, ou pelo menos uma diminuição de crescimento, e essa diminuição revelou certas características do sistema. Portanto, 'falhas geológicas' do sistema foram reveladas em 2008 de forma bem clara graças à crise", afirmou.
"Algo parecido está acontecendo agora, quando as falhas dos sistemas de saúde dos EUA, do Brasil ou do Reino Unido estão sendo reveladas claramente por essas crises. Então, acho, para voltar à desigualdade, que foi a crise financeira global que trouxe a desigualdade de volta quando as pessoas perceberam que não tinham ganhado muito na globalização, ao passo que o 1% mais rico havia ganhado enormemente", concluiu Milanovic.
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