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40% das cidades são atendidas só pelos Correios para envio de encomendas

Giulia Fontes

Do UOL, em São Paulo

28/09/2021 04h00

Em cerca de 40% das cidades, os Correios são a única empresa que presta serviços de envio de encomendas. O número representa mais de 2.000 dos 5.570 municípios brasileiros. O dado foi levantado a pedido do UOL pela própria estatal, considerando "estudos preliminares e levantamentos realizados pelo mercado". Os Correios não detalharam quais são os municípios que integram esse grupo, alegando que trata-se de "informação sensível e estratégica ao negócio". Por isso, não é possível saber quantas pessoas só podem contar com a empresa.

A estatal é alvo de um projeto de privatização, defendido pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido). O texto já foi aprovado na Câmara dos Deputados e aguarda análise do Senado.

Contrários à privatização, empregados da empresa, representados pela Adcap (Associação dos Profissionais dos Correios), dizem que a venda deve fazer com que as cidades hoje atendidas só pelos Correios fiquem sem serviço. O UOL perguntou aos ministérios da Economia e das Comunicações se existe esse risco, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.

Especialistas ouvidos pela reportagem dizem que, se a privatização for mesmo adiante, é preciso que o projeto de lei deixe explícito que esses municípios não poderão ficar sem os serviços e que garanta, também, que eles sejam oferecidos a preços justos. Isso porque a privatização transferiria o monopólio do Poder Público para a iniciativa privada, o que poderia afetar os preços.

Texto protege 'áreas remotas' do país, mas não diz quais

O projeto aprovado pelos deputados proíbe o fechamento de agências essenciais para a prestação do serviço postal em "áreas remotas" do país, mas não informa quais são essas áreas. O detalhamento fica para um momento posterior, o contrato de concessão.

Marcos Alves Silva, vice-presidente da Adcap, diz que, do jeito que está, o texto fará com que muitos dos municípios que hoje só têm os Correios fiquem sem o serviço, já que a operação nesses locais não é lucrativa.

Em muitas agências dos Correios, a arrecadação é muito pequena perto dos custos. Para uma empresa privada, isso não faz nenhum sentido.
Marcos Alves Silva, da Adcap

Marco Berberi, advogado, especialista em direito privado e ex-procurador-geral do Estado no Paraná, também destaca que as empresas privadas terão que avaliar se haverá interesse econômico em atender esses mais de 2.000 municípios.

Uma empresa privada, naturalmente, pensa no lucro, o que é legítimo. Quem deve pensar no lado social é o governo.
Marco Berberi, especialista em direito privado

'Lei precisa ser específica e explícita'

O advogado afirma que, para evitar o "abandono" desses municípios, a lei precisará deixar mais claro o que são as tais "áreas remotas". Segundo ele, conceitos indeterminados como esse são "perigosos", já que podem abrir margem para interpretações que trazem prejuízo à sociedade.

Fernando Moulin, sócio da Sponsorb, uma consultoria especializada em e-commerce, concorda que o marco regulatório da privatização dos Correios vai ter que estabelecer "condições muito objetivas" para que não haja desinteresse da iniciativa privada em atuar nesses lugares.

Não sou contra a privatização. Acho que os Correios podem ser muito bem administrados [pela iniciativa privada] se houver um marco regulatório como o que foi feito para as telecomunicações. Mas a lei precisa ser muito específica e explícita.
Fernando Moulin, sócio da consultoria Sponsorb

Preços acessíveis

Além de a lei garantir o atendimento, é fundamental que os preços do serviço sejam acessíveis, afirma Fábio Fialho, diretor de indústria da Abcomm (Associação Brasileira de Comércio Eletrônico). Ou seja, que o serviço siga chegando a municípios pequenos a valores justos.

Terá que haver uma regulação forte, para que essa parte da tarifação não seja modificada e não haja uma diferença significativa entre os fretes de grandes centros e de pequenos municípios.
Fábio Fialho, diretor de indústria da Abcomm

Moulin defende que a oferta de serviços logísticos que funcionem a um preço justo é um "direito básico" das pessoas, em um mundo de digitalização do comércio e de outros serviços.

Vivemos em um mundo que vai ser ainda mais integrado e, para ter cidadania plena, as pessoas têm que ter acesso a isso. É diferente, por exemplo, de uma agência bancária: se não tem, as pessoas podem fazer transações online. Para as mercadorias, existe a questão física, de entrega e retirada.
Fernando Moulin, sócio da consultoria Sponsorb

Monopólio privado

Garantir preços acessíveis passa por evitar que o serviço dos Correios em algumas regiões se torne um monopólio privado, segundo Berberi. Para ele, se a privatização for adiante, o edital de venda deve delimitar lotes que mesclem metrópoles com cidades pequenas, para impedir que os municípios menores "sobrem".

A ideia da privatização é trazer mais investimentos e competitividade. Essa competitividade só vem com a concorrência. O governo terá de criar regras para não esvaziar o serviço em cidades menores.
Marco Berberi, especialista em direito privado

Relator do projeto e ministérios não comentam

O UOL procurou o senador Márcio Bittar (MDB-AC), que é o relator do projeto de privatização dos Correios no Senado, questionando se ele fará alterações no texto do projeto de lei para que a privatização não prejudique os municípios menores. A assessoria do senador disse que ele ainda está se inteirando da proposta.

A reportagem também pediu um posicionamento dos ministérios da Economia e das Comunicações, mas não obteve resposta.