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Brasil sai da pandemia mais desigual, e vai piorar, dizem economistas

Efeitos da pandemia vão continuar prejudicando o desenvolvimento do país por muitos anos, dizem analistas - Marcelo Justo/UOL
Efeitos da pandemia vão continuar prejudicando o desenvolvimento do país por muitos anos, dizem analistas Imagem: Marcelo Justo/UOL

João José Oliveira

Do UOL, em São Paulo

19/02/2022 04h00

Resumo da notícia

  • Inflação, desemprego e queda de renda prejudicam pessoas de baixa renda
  • Na educação, deficit maior de aulas em escolas públicas que nas particulares afeta futuro acesso a mercado de trabalho
  • Desigualdade limita avanço do PIB, dizem economistas
  • Mais programas de distribuição de renda, de educação e formação profissional são necessários para reduzir desigualdade, dizem economistas

Alguns dos principais indicadores do Produto Interno Bruto (PIB) mostram que o Brasil já recuperou o nível de atividade econômica que tinha antes da pandemia. Mas as sequelas deixadas vão continuar prejudicando o desenvolvimento do país por muitos anos, dizem economistas. Segundo eles, os principais sintomas dessa crise sanitária -como inflação, desemprego e déficit de aulas nas escolas- afetaram mais a população de menor renda, ampliando a desigualdade, a distância entre ricos e pobres.

A pandemia atinge o presente e o futuro das classes D e E, que compõem 51% dos lares no país, dizem economistas. Essa parcela perde hoje mais emprego e renda e sofre com a inflação. No futuro, terá dificuldade extra para acessar o mercado de trabalho, após dois anos de menos aulas nas escolas públicas.

Mesmo com o país voltando ao nível de atividade econômica que havia antes da pandemia, isso acontece numa situação de maior desigualdade. As classes de renda mais baixa sofreram um impacto devastador. Temos um enorme desafio de recuperar essa massa de gente.
Guilherme Moreira, economista da Fipe

Por que a pandemia atingiu os mais pobres

Inflação: Os reajustes de preços nos últimos dois anos foram mais intensos nos itens essenciais da cesta básica, como alimentos, energia elétrica e combustíveis. Quanto menor a renda da família, maior o peso que esses produtos têm no orçamento.

Inflação anual por renda em 2020 e 2021 (Ipea)

  • Renda muito baixa: 6,20% e 10,08% (até R$ 1.808)
  • Renda baixa: 5,43% e 10,10% (até R$ 2.702)
  • Renda média-baixa: 4,80% e 10,40% (até R$ 4.506)
  • Renda média: 3,97% e 10,26% (até R$ 8.956)
  • Renda média-alta: 3,37% e 9,66% (até R$ 17.764)
  • Renda alta: 2,74% e 9,54% (acima de R$ 17.764)

A inflação é mais alta nos itens essenciais, e isso de fato piora relativamente mais a situação das famílias de classes mais baixas.
Ronaldo Souza Júnior, diretor de estudos e políticas macroeconômicas do Ipea

Emprego: O nível de ocupação dos trabalhadores brasileiros caiu 7,7% entre 2019 e 2020, para 51%, mas essa retração foi muito mais forte entre as pessoas sem instrução ou com o ensino fundamental incompleto (-19%).

O mercado de trabalho já vem passando por uma transformação, com o avanço da economia digital sobre atividades tradicionais. Esse uso cada vez maior de tecnologia exige profissionais mais qualificados. A pandemia acelerou essa tendência, e a parcela da população com baixa escolaridade é a mais afetada por essa transição.
Ronaldo Souza Júnior, Ipea
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Renda: As medidas de isolamento contra a pandemia atingiram em cheio as atividades essencialmente presenciais, que não podem ser substituídas pelo atendimento digital: comércio ambulante, cabeleireira, pequeno restaurante por quilo, prestador de serviços de manutenção.

O estudo Síntese de Indicadores Sociais, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) mostra que em 2020 o rendimento médio domiciliar per capita, de R$ 1.349, ficou 4,3% abaixo do de 2019 (R$ 1.410). E essa queda não foi proporcional no país.

Em média, a população ocupada branca tinha um rendimento mensal médio real do trabalho principal 73% maior que o da população preta ou parda -R$ 3.056 contra R$ 1.764.

Se excluirmos as transferências de renda, a desigualdade está bem maior que antes da pandemia.
Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV)

Pobreza reprimida, por enquanto

Economistas afirmam que a pobreza e a extrema pobreza no Brasil só não explodiram até agora por causa das políticas de transferência de renda, como o Auxílio Emergencial e o Auxílio Brasil. Segundo eles, com incertezas sobre o modelo dos programas após o fim de 2022, pode haver aumento da desigualdade.

Segundo o IBGE, de 2019 para 2020, as proporções da população na extrema pobreza e na pobreza, no Brasil, recuaram, respectivamente, de 6,8% para 5,7% e de 25,9% para 24,1% da população. Mas, sem os benefícios dos programas sociais, a proporção de pessoas em extrema pobreza teria sido de 12,9%, e a taxa de pessoas na pobreza subiria para 32,1%.

Taxa de extrema pobreza e pobreza em 2020 (IBGE)

  • Brasil: 5,7% (extrema pobreza) e 24,1% (pobreza)
  • Pretos e pardos: 7,4% e 31%
  • Brancos: 3,5% e 15,1%

Extrema pobreza e pobreza sem programas sociais em 2020

  • Brasil: 12,9% e 32,1%
  • Pretos e pardos: 17% e 41,1%
  • Brancos: 7,6% e 20,2%%

Além dos indicadores econômicos, vimos situações na economia que mostram a forte queda de renda dos mais pobres. Quando um supermercado passa a vender ossos que antes eram descartados é porque percebeu que as famílias que compravam carne perderam muito poder aquisitivo.
André Roncáglia, economista e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

Desigualdade se perpetua no futuro

A pandemia também deixa uma herança de desigualdade entre os brasileiros que nem sequer chegaram ao mercado de trabalho.

Na educação básica, 42,6% das escolas promoveram aulas ao vivo pela internet, sendo 35,5% delas na rede pública e 69,8% na rede privada. O problema é que apenas 48,6%% dos alunos de 15 a 17 anos de idade em escolas públicas tinham computador e acesso à internet em suas casas.

Alunos sem nenhum tipo de aula durante a pandemia em 2020 (Inep):

  • Brasil: 10,8%
  • Rede pública: 12,4%
  • Rede privada: 2,9%

Outro retrato da desigualdade na educação brasileira foi tirado no Enem de 2021, que teve uma queda de 77,4% no número de inscritos com renda familiar de até três salários mínimos, segundo dados do Semesp, que representa mantenedoras de ensino superior do Brasil.

Muitos estudantes de baixa renda e de escolas públicas que tinham direito à isenção na taxa de inscrição no Enem (R$ 85) perderam o benefício porque faltaram à edição de 2020 - justamente por causa da pandemia.

A prova, que já teve mais de 8,5 milhões de inscritos, recebeu apenas 3,5 milhões de estudantes no ano passado. Quem perdeu esse processo, necessário para acessar o ensino superior e ter chance de disputar o mercado de trabalho de maior remuneração, foram principalmente os estudantes mais pobres, segundo o diretor-executivo do Semesp, Rodrigo Capelato.

Impacto no PIB

O crescimento do PIB por si só não resolve o problema da desigualdade, apontam economistas. Ao contrário, dizem, não há crescimento sustentável sem a redução da desigualdade.

Se a população não tem renda, a única forma para ela manter o padrão de consumo é por meio do crédito. E isso tem vida curta. Assim como a política de crescer o bolo para depois dividir as fatias, o que também não deu certo.
André Roncáglia, economista e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

Classes sociais no Brasil (Tendências Consultoria)

Classe D e E: 51% (renda domiciliar de até R$ 2,8 mil)

Classe C: 32,8% (renda domiciliar até R$ 6,8 mil)

Classe B: 13,3% (renda domiciliar até R$ 21,3 mil)

Classe A: 2,9% (renda domiciliar acima de R$ 21,3 mil)

Para o país crescer, é preciso que a população tenha condições de acompanhar o crescimento, ou então estaremos sempre batendo no teto, que é a capacidade de consumo da grande maioria da sociedade.
Vivian Almeida, economista e professora do Ibmec-RJ

Necessidade de programas contra desigualdade

Por isso é fundamental que os governos no Brasil tenham políticas de redução da desigualdade, afirmam economistas de diferentes escolas e tendências de formação.

Segundo eles, isso passa por programas de distribuição de renda - como o Auxílio Brasil -, por investimentos na educação pública, em especial no ensino básico e fundamental, por iniciativas de qualificação e inserção profissional de jovens e ainda por instrumentos de apoio social, como auxílio-creche, para que as mães de famílias mais pobres possam acessar formação e empregos.

Idealmente, precisamos de uma mudança estrutural no volume de transferências de renda no Brasil. A pandemia até aumentou a pressão por isso. É preciso ter uma discussão para ampliar os programas de renda e não apenas para um ano específico.
Daniel Duque, economista e pesquisador do Ibre/FGV

Procurado, o ministério da Economia do governo federal não respondeu às perguntas da reportagem sobre quais políticas seriam necessárias para recuperar o poder de renda e a inserção no mercado da população e se o desenvolvimento econômico fica comprometido com o aumento da desigualdade social.