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Ditadura culpou clientes por inflação e sugeriu trocar tomate por pepino

Weudson Ribeiro

Colaboração para o UOL, em Brasília

06/06/2022 04h00

Um vídeo sobre inflação, de 1977, durante a ditadura militar (1964-1985), viralizou no TikTok e mostra que as campanhas publicitárias no período responsabilizavam consumidores e comerciantes pela alta dos preços. A inflação estava perto de 40% ao ano. Em um dos anúncios, o locutor diz que "o custo de vida é culpa de quem compra e de quem vende". Em outra propaganda, os clientes são estimulados a trocar o tomate caro por um pepino. (veja algumas publicidades no vídeo acima).

Ao fim dos anos 1970, o regime militar tentava terceirizar à população a responsabilidade por políticas econômicas ineficazes, culpando consumidores e comerciantes pela crise
Lucas Pedretti, professor de história

Especialistas consultados pelo UOL dizem que momentos de instabilidade socioeconômica demandam engajamento social. Mas o governo militar, em vez de criar políticas públicas eficientes, usava propagandas para pedir sacrifícios da população no enfrentamento da crise logo depois do "milagre econômico" —curto período de desenvolvimento que marcou a economia brasileira de 1969 a 1973.

'Tomate caro? Troque por pepinos'

"Você está vendo tomates com cor de tomates, com jeito de tomates. Mas o preço não é de tomates. É caro! Caríssimo, se você comprar. Porque se você não comprar, o preço vai ter que diminuir", dizia a locução da peça publicitária lançada à época.

A solução encontrada para controlar o disparo no valor? "Enquanto você espera o preço diminuir, você sempre pode encontrar um substituto: se o tomate está caro, compre pepino ou alface. Se todos fizerem isso com um produto caro, ele não vai ser vendido e vai ter que ficar com um preço justo", orienta a peça.

Culpa de quem compra e de quem vende

Em outra campanha governamental de 1977, a mensagem é ainda mais direta: "Todo mundo reclama do preço do arroz, do tomate e do feijão. Mas todo mundo continua comprando e vendendo. Ninguém faz nada. Entendam de uma vez por todas: o custo de vida é culpa de quem compra e de quem vende. A partir de hoje, compre só o que o seu dinheiro pode pagar".

Queda do salário mínimo

Pesquisador do golpe militar, o professor de história Lucas Pedretti afirma que, de 1964 a 1985, o salário mínimo no Brasil caiu 50% em valores ajustados pela inflação. "Há um discurso de que a ditadura alavancou o desenvolvimento do país —isso não se sustenta. O milagre econômico foi baseado no aprofundamento de desigualdades sociais e fez os anos 1980 ficarem conhecidos como a década perdida", diz.

'Milagre' temporário

É verdade que a economia brasileira nunca cresceu tanto como nos primeiros anos do regime militar. A taxa média anual de crescimento do PIB naquele período girava em torno de 10% —grande parte dessa expansão foi possível graças a empréstimos tomados de instituições internacionais.

Em 1973, no entanto, o país começou a enfrentar as consequências do chamado choque do petróleo. O valor do barril subiu 400% e afetou diversos países importadores —entre eles o Brasil.

Na avaliação do professor de história econômica do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa) Vinícius Müller, o diagnóstico da época, de que o "milagre" seria um avanço econômico definitivo, passou então a ser entendido como um fenômeno temporário.

"O contexto do governo militar, a economia e as propagandas relacionadas à inflação guardavam relação com a maneira de a ditadura se legitimar frente à sociedade. Por um lado, a violência exercida pela ditadura era combustível para ampliar a oposição; por outro, o sucesso econômico do chamado 'milagre' amparava o apoio ao regime", analisa Müller.

A crise obrigou o governo brasileiro a refinanciar suas dívidas e buscar empréstimos a juros cada vez maiores. Com isso, o crescimento do PIB brasileiro foi de 14% em 1973 para 9% no ano seguinte.

Uma outra campanha, lançada em 1977, pede que o espectador estabeleça o próprio racionamento de gasolina, limitando o uso do carro a uma meta de consumo semanal: "Fixe sua meta, ajude o país a importar menos combustível! Chegou a hora de o brasileiro botar os pés no chão", diz.

Duas crises de combustíveis em 6 anos

Em 1979, uma nova crise do petróleo atingiu o Brasil, elevando o preço médio do barril de US$ 50 para US$ 120 a preços atuais.

Naquele ano, o governo militar lançou uma campanha em que alertava para a necessidade de se conter o consumo de combustíveis até que o Brasil tivesse à disposição fontes alternativas do produto.

"As reservas de petróleo não se renovam. A perspectiva de escassez e os altos preços impõem a busca de fontes alternativas. Até chegar lá, precisamos conter o nosso consumo de derivados de petróleo. Do óleo combustível na indústria, do gás, e do diesel e da gasolina nos transportes, controle seu consumo!", diz um locutor num vídeo de pouco mais de um minuto.

Müller explica que a dependência do Brasil de empréstimos para sustentar a situação econômica resultou na explosão da dívida externa naquele período.

"A inflação e os impactos da crise internacional do petróleo foram rapidamente desqualificados pela propaganda do governo", diz.

Entre a primeira e a segunda crise do petróleo, a dívida externa brasileira foi de US$ 12,5 bilhões para US$ 50 bilhões. Entre a segunda crise e o fim do regime militar, ela praticamente dobrou, chegando a US$ 96 bilhões.

Ideia de 'Fiscais do Sarney' também quis envolver a sociedade

Eleito indiretamente pelo Congresso Nacional em 1985, José Sarney assumiu a Presidência da República com a inflação em 242% e saiu do governo cinco anos depois com 1.973%.

Em 1987, o então presidente anunciou a suspensão do pagamento dos juros da dívida externa por tempo indeterminado: o Brasil estava quebrado.

Vinicius Müller diz ver semelhanças entre a propaganda do governo militar sobre custo de vida e a comunicação do governo Sarney no auge da hiperinflação.

O então presidente Sarney criou uma tabela de preços e convidava todos brasileiros a fiscalizarem os estabelecimentos. Se algum não acompanhasse a tal tabela, conhecida como tablita, a ordem era autuar. Na imagem, um estabelecimento é fechado pela Sunab (Superintendência Nacional de Abastecimento) devido a remarcação de preços - Memorial da Democracia - Memorial da Democracia
Estabelecimento é fechado pela Sunab (Superintendência Nacional de Abastecimento) nos anos 80 devido a remarcação de preços
Imagem: Memorial da Democracia

"Durante 1986, após a execução do Plano Cruzado, o governo ampliou sua campanha em favor de um engajamento da sociedade no combate à inflação. Embora essa estratégia tenha seus méritos, os problemas tanto de formulação quanto de execução daquele conjunto de medidas econômicas acabaram sendo tratados como secundários em favor de uma explicação que creditava a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso do plano ao engajamento popular", afirma.

Foi nesse contexto que surgiu, em 1986, a personagem da "fiscal do Sarney" —donas de casa e pais de família que vigiavam supermercados, padarias e afins para coibir a remarcação dos preços na calada da noite.

Em contraste, Müller elogia a comunicação do Plano Real, sob a liderança do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

"Após o aprendizado de fracassos anteriores, a construção da confiança da população em relação ao Plano Real foi mais cuidadosa e eficiente. Por isso, erraram aqueles que apostaram que, a exemplo do Plano Cruzado, o real faria da comunicação uma aliada para esconder seus erros e fracassos. No fim, não foi isso que ocorreu."