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Parcelo até comida no cartão, diz arquiteto desempregado que deve R$ 25 mil

Setor de supermercados registra aumento no uso de crédito para compra de comida - Getty Images/iStockphoto
Setor de supermercados registra aumento no uso de crédito para compra de comida Imagem: Getty Images/iStockphoto

Giuliana Saringer

Do UOL, em São Paulo

08/07/2022 04h00

O arquiteto Marcelo da Silva, 27, está parcelando as compras de mercado no cartão de crédito. Morador de São Gonçalo (RJ), Silva está desempregado e sobrevive fazendo bicos quando aparecem, mas a instabilidade dificulta o pagamento das contas em dia.

"Meus cartões de crédito viraram uma segunda renda. Estou pagando tudo que eu posso neles. Eu parcelo tudo e vou esperando, contando com a sorte e me virando como posso. Há um mercado em que costumo fazer compras que parcela em três vezes. Quando vou a algum que não aceita, eu parcelo o pagamento da fatura do cartão depois", afirma Silva. Ele representa uma tendência na crise: cada vez mais brasileiros estão parcelando até comida no cartão de crédito.

A dívida de Silva no cartão é de cerca de R$ 20 mil a R$ 25 mil. Hoje mora com o pai, que é motorista de aplicativo, e com a mãe, que não trabalha. Além de parcelar as compras, Silva passou a ir mais vezes a mercados, em busca de promoções.

"Tento fazer a compra do mês inteira, mas há alguns produtos que espero para ver se ficam mais baratos. Quando encontro algo na promoção, já compro para o mês inteiro", diz Silva.

A cada mês, fica mais difícil comprar

A agente escolar Aline Mazucanti, 41, mora em São Paulo com os dois filhos, de 10 e 20 anos. A cada mês sente que as compras do mercado estão ficando mais caras e difíceis de pagar.

"Meu custo com mercado aumentou muito, tudo está mais caro. A renda que eu tenho não é suficiente para pagar tudo", afirma Mazucanti.

Sempre que dá, ela prefere parcelar a compra do mercado. Quando não tem essa opção, prefere comprar em algum mercado atacadista, para conseguir preços melhores.

Na tentativa de economizar, Mazucanti diminuiu o consumo de alguns produtos básicos que considera caros, como o leite e a carne vermelha.

No mês passado fui a um mercado que não parcelava, paguei R$ 400 no crédito e não levei quase nada. Até o mês passado eu consegui pagar a fatura do cartão inteira, usando o cheque especial. Neste mês, não sei como vou fazer, porque o valor ficou muito acima.
Aline Manzucanti, agente escolar

Hoje a dívida dela no cheque especial é de cerca de R$ 500.

Uma pesquisa da Proteste mostra que 64,8% passaram a comprar marcas mais baratas no supermercado, 40,9% cortaram alimentos não essenciais, como bebidas alcoólicas, doces e salgadinhos, e 48,7% passaram a comprar menos carne por causa do aumento dos preços.

Aumento do uso do crédito

Leandro Rosadas, economista e especialista em gestão de supermercados, hortifrútis, atacarejos, padarias e açougues, afirma que o setor sentiu um aumento no uso de crédito de forma geral: antes representava cerca de 30% dos pagamentos e agora chega a 70% em alguns locais.

Os dados são baseados em mentorias que Rosadas faz com gestores de supermercados.

O consumidor está empurrando para depois o pagamento de comida. O supermercado é a última coisa que as pessoas passam no cartão. Está ficando um pouco assustador.
Leandro Rosadas

Outra coisa que tem acontecido, de acordo com Rosadas, é a criação de campanhas de parcelamento nos locais que não aceitam essa forma de pagamento no dia a dia, principalmente na segunda quinzena do mês, período em que as pessoas costumam ter menos dinheiro.

"O poder de compra das pessoas vai diminuindo, e a situação se torna cada vez mais insustentável. A renda não acompanha o aumento dos preços. Isso diminui a capacidade de fazer compras pagando à vista", afirma Franklin Krieger Mayer, especialista de negócios e produtos do Ailos, sistema de cooperativa de crédito.

Tharik Camocardi de Moura, diretor estratégico da DM, administradora de cartões de varejistas, como Sonda, Spani e Chama, afirma que o setor de supermercados percebeu um aumento no uso do crédito e do parcelamento no cartão para pagar comida.

"Quem tinha alguma renda para fazer essas compras no débito ou no dinheiro está perdendo poder de compra. Mesmo quem tem algum dinheiro sobrando, opta pelo crédito, para deixar o valor para emergências", afirma Moura.

Hoje a maior parte do público da DM é de pessoas acima de 40 anos com renda familiar entre R$ 1.500 e R$ 3.000. Uma pesquisa da Serasa mostra que, em 2021, 70% dos brasileiros que se endividaram no cartão usaram o meio de pagamento para comprar comida.

Ricardo Vieira, diretor-executivo da Abecs (Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços), diz que não possui dados sobre o uso de parcelamento para compra de comida, mas que o parcelamento de cartão têm crescido nos últimos anos. Normalmente isso é usado para financiar produtos com valores mais altos, como geladeiras, fogões e televisores.

Varejo sofre com parcelamento

O parcelamento não é uma prática em todos os mercados, mas os estabelecimentos que o fazem enfrentam problemas.

"Os players reclamam e brigam por taxas de cartão melhores. As pequenas lojas não têm capacidade financeira para fazer esse parcelamento, mas a utilização do cartão aumentou de uns três meses para cá", afirma Rosadas.

Outra mudança importante foi o fato de que agora atacados estão aceitando cartões de crédito. "Os atacados, por exemplo, não aceitavam até há pouco tempo. Agora até cartão de alimentação estão aceitando para não perder o cliente", afirma Rosadas.

Único jeito de colocar comida na mesa

A maioria dos especialistas em finanças pessoais defende que é necessário evitar parcelar compras de itens básicos para evitar o endividamento.

No entanto, para alguns brasileiros, essa é a única forma de colocar comida na mesa. Moura diz que a DM percebeu que a inadimplência passou a ser menor à medida que o parcelamento de compras de mercado foi sendo aceito.

"A pessoa consegue se planejar com o que ela ganha. Pessoas de baixa renda tendem a não fazer a conta de quanto custa o produto todo, quando falamos de bens caros, mas se a parcela vai caber no bolso. Acaba sendo a mesma lógica em momentos de aperto para o básico", afirma Moura.

A orientação de Luiz Rabi, economista-chefe da Serasa Experian, é evitar ao máximo o parcelamento de compras básicas no cartão de crédito. Mas, se não houver jeito, pagar a fatura total na data certa, para não cair no rotativo do cartão de crédito —que possui taxas altíssimas de juros, de mais de 300% ao ano.

"Se a pessoa concentra o cartão e mesmo assim não consegue arcar com o custo quando a fatura chega, significa que vai ter que cortar inclusive as coisas básicas ou aumentar a renda. Não há outra forma", afirma Rabi.

Vieira diz que o cartão de crédito deve ser usado como parte do planejamento financeiro e não ser considerado uma renda adicional.