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'Não sobra salário para pagar a dívida', diz porteiro

Porteiro Jones Alves, 27 anos, viu dívida mais que triplicar desde 2021 - Arquivo pessoal
Porteiro Jones Alves, 27 anos, viu dívida mais que triplicar desde 2021 Imagem: Arquivo pessoal

Marcela Lemos

Colaboração para o UOL, do Rio

02/03/2023 09h21

O número de brasileiros inadimplentes saltou no último ano e chegou 70,1 milhões de pessoas em janeiro de 2023, um novo recorde.

A inflação e a recuperação ainda lenta da renda do trabalhador são as principais causas do elevado número de endividados e com dívidas atrasadas. Isso limita a capacidade de consumo das famílias e também o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) do país.

Trabalhadores ouvidos pelo UOL contam que o início da pandemia de covid-19, em 2020, foi determinante para a piora financeira e que ainda enfrentam dificuldades para colocar as contas em dia. A economia brasileira registrou queda no 4º trimestre de 2022 e fechou o ano com avanço de 2,9%, contra 5% em 2021.

Porteiro viu dívida mais que triplicar

Há sete anos morando no Rio de Janeiro, o paraibano Jones Alves, 27, diz que vive seu pior momento financeiro. Em 2020, o porteiro viu o salário despencar 25% após não poder mais contar com as horas extras que ajudavam a aumentar a renda mensal.

Em 2021, vivendo de aluguel e com dificuldades para arcar sozinho com todas as contas da casa, ele começou a parcelar a fatura do cartão de crédito e logo em seguida suspendeu totalmente o pagamento. Em junho do ano passado, durante um contato do banco, foi informado que a dívida de R$ 800 tinha se transformado em um saldo devedor de R$ 2.500. Agora, ele nem sabe dizer o valor atual da dívida.

O salário só dá para pagar o aluguel e as contas da casa. Não sobra salário para pagar a dívida. Eu quero resolver, mas continuo sem condições. Meu nome está sujo, não consigo fazer outro cartão de crédito, não consigo parcelar uma compra no boleto, pois não liberam. Não queria estar nesta situação, mas recebo e já fico zerado. No mercado não dá para comprar nada. Tá difícil viver. A inflação só aumenta

Para reverter a situação, o porteiro está à procura de um segundo trabalho nos dias de folga. O paraibano é casado, tem um filho de um ano e três meses e trabalho numa portaria em Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de Janeiro, numa jornada de 12x36 horas. Ou seja, trabalha um dia e folga o seguinte.

'Nem consegui ver ainda o valor que está o cartão'

A doméstica Sara Pereira, 54, não sabe quando vai conseguir pagar a dívida do cartão de crédito - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A doméstica Sara Pereira, 54, não sabe quando vai conseguir pagar a dívida do cartão de crédito
Imagem: Arquivo pessoal

A doméstica Sara Pereira, 54, é outra que ainda não conseguiu recompor a renda. Ao mesmo tempo que via o número de trabalhos diminuir em decorrência das infecções pelo novo coronavírus, ela precisou intensificar os cuidados médicos da mãe, uma idosa de 84 anos, que, além de sofrer de Alzheimer, convivia com problemas cardiovasculares.

No período, Sara já convivia com uma defasagem de R$ 1 mil nos rendimentos e começou 2021 com uma dívida de R$ 10 mil contraída em três cartões de crédito.

"Passei a pagar só o mínimo do cartão de crédito, só que foi ficando cada vez mais pesado até que parei de pagar tudo. Em janeiro de 2021, minha mãe faleceu e logo depois começamos a cuidar do meu pai que teve câncer. Nem consegui ver ainda o valor que está o cartão", explicou.

Moradora do morro da Lagartixa, que integra o Complexo da Pedreira, em Costa Barros, na zona norte do Rio, Sara ainda não sabe quando conseguirá pagar as dívidas. A profissional trabalha em um apartamento como doméstica, com carteira assinada, e como diarista aos finais de semana - renda extra que até o momento não conseguiu recuperar totalmente.

"Na pandemia perdi todo esse extra. Só agora que está voltando aos poucos. As pessoas falam que eu trabalho muito, mas mesmo assim é tudo muito difícil. Os gastos são muito altos. Meu pai tem consultas e exames no Hospital [Federal] de Bonsucesso [na zona norte]. Ele não anda mais direito e só o carro para levar e buscá-lo sai por R$ 150 cada vez"


Recorde de inadimplentes

Tanto famílias de baixa renda como as de renda mais alta entraram em 2023 mais endividadas, segundo pesquisa da Confederação Nacional do Comércio (CNC).

Levantamento da Serasa Experian mostra que o volume de inadimplentes saltou de 59,3 milhões em janeiro de 2018 para 70,1 milhões de pessoas em janeiro de 2023. Em janeiro de 2022, eram 64,8 milhões de brasileiros com dívidas em atraso.

Atualmente, cada inadimplente deve, em média, R$ 4.612,30 - um crescimento de 19% em relação a janeiro de 2018, quando o valor era de R$ 3.926,40, segundo a pesquisa. O estudo destaca ainda que as dívidas financeiras foram as que mais cresceram, com aumento de 71% - influenciado pela inflação e pelos altos juros dos últimos cinco anos.

O governo promete lançar um programa para ajudar endividados. Segundo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o lançamento depende só de aval de Lula e uma reunião está marcada para segunda-feira (6).

Pagando dívida do cartão de crédito com outro cartão

Elise Duque, 32, parcelou dívida, mas interrompeu pagamentos após ficar desempregada  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Elise Duque, 32, parcelou dívida, mas interrompeu pagamentos após ficar desempregada
Imagem: Arquivo pessoal

Com problemas financeiros desde 2018, a jornalista Elise Duque, 32, convive dívidas contraídas pelo uso do cheque especial e pelo atraso no pagamento das faturas do cartão de crédito, que somavam, inicialmente, cerca de R$ 7 mil.

Elise chegou a pagar quatro parcelas da dívida, mas interrompeu novamente os pagamentos, após ficar desempregada Em 2020, ela firmou um acordo com o banco para quitar a dívida, em 24 parcelas de R$ 700 - o que resultaria no pagamento de R$ 16.800 - mais que o dobro do valor devido.

"Atualmente, tenho outro cartão que já está com a fatura alta e a forma que encontrei foi pagá-lo com outro cartão."

Hoje, trabalhando como freelancer, ela conta que não dispõe de recursos para quitar os débitos, o que tem afetado também a sua saúde mental.

"Eu tenho depressão e TAG (Transtorno de Ansiedade Generalizada) e o principal motivo das minhas crises é a falta de grana, de emprego, porque eu não tenho como pagar nem as dívidas nem as necessidades básicas do dia a dia. Evito atender número desconhecido por achar que é o banco, mas fico com medo de ser uma oportunidade de emprego e isso já me dá gatilho para ansiedade"