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Futuro do rotativo do cartão de crédito exige respeito à livre concorrência

Na última quinta-feira (10), o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, surpreendeu o mercado ao informar, em audiência pública no Senado, que deve apresentar, em 90 dias, a solução para o fim do rotativo. O chamado "rotativo do cartão" aparece quando nós, brasileiros, deixamos de pagar o valor total da fatura e adiamos a dívida para os meses seguintes. Segundo ele, 50% dos consumidores estão inadimplentes, e as taxas de juros chegaram a incríveis 455% ao ano, um percentual sem precedentes. E por que o brasileiro não está conseguindo pagar a fatura? Para o Regulador, um dos culpados seria justamente o motor do consumo no País, o parcelado sem juros. Como podemos pagar em 10 vezes, compramos mais do que devemos e podemos. A solução, então, seria acabar com as nossas famigeradas e amadas prestações, com a esperança, a meu ver desvirtuada, de que vamos aprender a comprar.

Entre as formas possíveis de se fazer isso, segundo Campos Neto, estão criar uma tarifa para desincentivar esse financiamento sem juros em longo prazo e catapultar o consumidor que não paga a fatura diretamente para o parcelado com juros de 9%. Essas seriam as soluções regulatórias ou legislativas. Contudo, nos próximos 90 dias que nos separam da guilhotina das nossas amadas "quer pagar de quantas vezes", há muito espaço para a criatividade. Em meio ao "barata voa" do setor, declarações têm mencionado a possibilidade de fixação conjunta, por empresas e instituições financeiras, de tarifas, percentuais, condições e limitações para o parcelamento.

A literatura concorrencial já mostrou que é exatamente nos momentos de crise, quando respostas urgentes são imploradas, que mais se incorre no erro das soluções combinadas. A união de esforços para encontrar uma saída comum é certamente a forma mais simples de resolver problemas, mas não é necessariamente a mais eficiente, sob a perspectiva do bem-estar do consumidor. Se há qualquer espaço para a concorrência, por menor e mais difícil que possa ser, ela é comprovadamente a melhor solução. É concorrendo que as empresas lutam pelos seus consumidores. É no espectro da rivalidade que nasce a inovação e floresce o melhor preço, em qualquer mercado, sem exceção.

A urgência e a crise do superendividamento não são justificativas legítimas para a eliminação da competição. O Cade (e outras várias autoridades concorrenciais) já negou imunidade a carteis de crise ou carteis "do bem". Em um passado não muito distante, na eclosão da pandemia, as companhias aéreas não conseguiram o aval da autoridade para combinar a oferta conjunta de voos e venda compartilhada de bilhetes. Além disso, o xerife concorrencial nem sequer avalia as desculpas de que a medida é para o bem geral da nação, de que o resultado final é positivo e de que haverá alívio para o setor. A fixação de práticas uniformes é chamada tecnicamente pela confusa expressão "ilícito por objeto", que, trocando em miúdos, diz que a verificação de efeitos negativos é completamente dispensável, e a intenção do agente é completamente irrelevante para uma condenação.

Também é mais do que pacífico que as associações setoriais não servem de guarda-chuva para práticas anticompetitivas ou mesmo para a simples troca de informações sensíveis entre concorrentes. A título de exemplo, já em 2014, 58% dos processos pautados para julgamento no Cade tinham pelo menos uma entidade de classe no polo passivo. A essa altura, já deve ter chegado às centenas o número de associações condenadas por incentivar combinações, a maioria delas com a intenção mais altruísta de resolver o mercado.

Por fim, eventual pressão de um regulador e do Senado — aqui falo da existência de um projeto de lei sobre o assunto — também não dão imunidade ao agente privado para resolver a questão por conta própria. Há quase dez anos, o Cade julgou um processo em que as empresas fabricantes de brinquedos estariam fixando cotas de importação a pedido do Governo Federal, que de fato havia homologado o acordo entre elas. A autoridade entendeu que não havia nada que indicasse que, mesmo com a homologação, os agentes privados estariam legitimados a se organizar. O Cade entendeu que o Governo não havia dado qualquer prerrogativa à associação para discutir a solução conjunta e nem poderia fazê-lo, por se tratar de um tema extremamente sensível do ponto de vista concorrencial, que deveria ser tratado de forma individual.

Diante desse contexto, não podemos perder de vista que qualquer solução apresentada pelo setor de meios de pagamento, seja ela encomendada pelo Banco Central ou proposta pelos agentes privados, deve respeitar estritos contornos concorrenciais. Soluções matadoras que conjuguem a união de esforços ou, pior, a fixação de parâmetros, têm como vítima o consumidor, exatamente o mesmo que o Banco Central visa a proteger. O Regulador terá, aqui, a difícil missão de respeitar esse princípio tão claramente disposto na nossa Constituição Federal, evitando induzir a erro uma indústria que com muito esforço se tornou competitiva nos últimos anos. As empresas, a seu turno, também precisam permanecer vigilantes, sem sucumbir ao canto da sereia da solução simplista de que alguém, do lado privado, poderá organizar esse mercado e decidir o futuro do rotativo.

*Professora da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (Direito GV). É doutora pela Faculdade de Direito da USP e pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne

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