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Sem ouvir Ministério da Saúde, Planalto faz campanha contra quarentena; Secom fala em vídeo experimental

O presidente Jair Bolsonaro, em videoconferência com governadores do Sudeste - Marcos Corrêa/PR
O presidente Jair Bolsonaro, em videoconferência com governadores do Sudeste Imagem: Marcos Corrêa/PR

Lisandra Paraguassu, Maria Carolina Marcello e Ricardo Brito

27/03/2020 15h19

Por Lisandra Paraguassu, Maria Carolina Marcello e Ricardo Brito

BRASÍLIA, 27 Mar (Reuters) - O governo federal não consultou o Ministério da Saúde sobre a campanha "O Brasil não pode parar", que custou 4,9 milhões de reais e convoca os brasileiros a não deixarem o trabalho durante a epidemia de coronavírus, contrariando recomendação de especialistas e a despeito de medidas de restrição adotadas por Estados, disseram duas fontes com conhecimento da situação.

De acordo com as fontes ouvidas pela Reuters, o material foi encomendado e aprovado pelo Palácio do Planalto, sem passar pelo Ministério da Saúde. Segundo uma delas, o ministério não foi consultado e nem sequer avisado de que o material iria para o ar a partir de quarta-feira, como ocorreu.

O texto da campanha vai na contramão do preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e mesmo do que diz o ministério, apesar de o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ter suavizado suas posições sobre as medidas de isolamento social nos últimos dias para diminuir o conflito com o presidente Jair Bolsonaro, que as atacou em pronunciamento em cadeia nacional nesta semana e em declarações públicas.

A empresa brasiliense iComunicação Integrada foi contratada por 4.897.855,00 reais na última terça-feira, com dispensa de licitação, para "disseminar informações de interesse público à sociedade, por meio de desenvolvimento de ações de comunicação".

A dispensa foi publicada no Diário Oficial de quinta-feira, sob os nomes do secretário de Comunicação, Fabio Wajngarten, que está de licença médica desde que foi contaminado pelo coronavírus durante viagem presidencial a Miami no início do mês, e da secretária de Gestão e Controle da Secom, Maria Lúcia Valadares e Silva.

O argumento legal é o artigo da lei de licitações que prevê a dispensa de licitação "nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços". Na semana passada, o Congresso aprovou declaração de calamidade devido à pandemia de coronavírus.

A primeira peça da campanha foi veiculada na conta do governo federal no Instagram, na quarta-feira. Em um fundo amarelo aparece a hashtagh "#O Brasil Não Pode Parar". Embaixo, uma explicação de que a quase totalidade dos óbitos no mundo seria de idosos, e que os demais deveriam voltar à normalidade respeitando um distanciamento social.

Nesta sexta-feira, um vídeo de 1 minuto e 20 segundos da campanha começou a circular em redes de mensagens de aliados do Planalto, ainda sem definição de quando e onde começará a ser veiculado oficialmente.

Sobre imagens de ambulantes, feirantes e outros trabalhadores, com uma música sombria, um texto lido repete que para várias categorias de trabalhadores, "O Brasil não pode parar".

"Para quem defende a vida dos brasileiros e as condições para que todos vivam com qualidade, saúde e dignidade, o Brasil definitivamente não pode parar", encerra o narrador.

O mote é o mesmo defendido com insistência por Bolsonaro desde seu pronunciamento, na última terça-feira, quando convocou os brasileiros a voltarem ao trabalho, criticou governadores por estarem adotando medidas que considera muito duras e voltou a chamar o coronavírus de "gripezinha".

Bolsonaro defende o chamado "isolamento vertical", em que apenas as pessoas mais vulneráveis --idosos e pessoas com doenças crônicas-- fiquem isoladas, enquanto o restante volte ao trabalho. Com a insistência do presidente, Mandetta disse na quarta-feira que o ministério iria estudar a medida.

Horas depois de ser questionada pela Reuters, a Secretaria de Comunicação disse que o vídeo "foi produzido em caráter experimental", sem custo e sem avaliação e aprovação da Secom.

"A peça seria proposta inicial para possível uso nas redes sociais, que teria que passar pelo crivo do governo. Não chegou a ser aprovada e tampouco veiculada em qualquer canal oficial do governo federal", diz a Secom em nota.

A Secom, no entanto, não explicou a publicação no Instagram. Insistiu que "não há qualquer campanha do governo federal com a mensagem do vídeo sendo veiculada", com a ressalva final: "por enquanto".

Incentivados por Bolsonaro, alguns governadores mais alinhados com o governo federal, como o de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), o de Santa Catarina, Carlos Moisés (PSL), e o de Rondônia, Marcos Rocha (PSL), anunciaram que irão reabrir o comércio.

Já o governador de São Paulo, João Doria, criticou duramente a campanha do governo.

"Esses 4,8 milhões de reais de investimento nessa campanha para desinformar a população deveriam ser utilizados para comprar suprimentos para os hospitais públicos, o atendimento aos mais pobres, aos mais humildes, aos desvalidos e ao atendimento e a informação correta à população", disse em entrevista na tarde desta sexta.

Doria lembrou da campanha lançada em Milão, há exatamente um mês, contra o isolamento social.

"Consultem o prefeito de Milão, que ontem declarou o arrependimento de ter apoiado uma iniciativa como essa. O resultado da irresponsabilidade em Milão hoje representa 4.400 italianos mortos porque acreditaram na mensagem que não era preciso parar", disse Doria.

A cidade, capital financeira da Itália, viralizou na Internet uma campanha semelhante, chamada "Milano non si Ferma" (Milão não Para).

No vídeo, que falava dos "milagres" feitos todos os dias pelos seus cidadãos, exortava os milaneses a continuar trabalhando. "Porque, a cada dia, não temos medo. Milão não para."

Na quinta-feira, o prefeito da cidade, Giuseppe Sala, que apoiou a campanha, admitiu o erro. Em um mês, a Lombardia teve mais de 37.298 mil casos e 5.402 mortes, e é a mais atingida da Itália.

"Foi no dia 27 de fevereiro, um vídeo ocupava a rede, todos o distribuíam, eu também distribuí. Certo ou errado, provavelmente errado", disse o prefeito. "Ninguém entendeu a virulência do vírus. E, por outro lado, naquele momento, esse era o espírito", disse o prefeito à emissora italiana Rai Due.

A Itália chegou nesta sexta a 86.498 casos da doença e 9.134 mortes.

Na noite de quinta, em Balneário Camboriú (SC), houve uma carreata em defesa da abertura dos negócios. O vídeo foi publicado pelo presidente em suas redes sociais. No Twitter, a hashtag #OBrasilNãoPodeParar está nos primeiros lugares nos tópicos do dia.

Nesta sexta-feira, o PSOL entrou com uma representação contra o governo federal na Procuradoria-Geral da República questionando a campanha.