'Alguém tem que fazer esse trabalho': ela é veterinária em frigorífico

Roberta Trevisan, 26, escolheu a faculdade de veterinária por um motivo comum entre os estudantes: o amor pelos animais. Mas, com o passar dos anos, a universitária decidiu deixar os pet shops de lado para se aventurar em uma área menos popular, a dos frigoríficos.

A jovem de Joinville, em Santa Catarina, conta que sofreu com a quebra de expectativa no mercado de trabalho e encontrou na indústria uma forma de conseguir ganhar mais com seu conhecimento.

"O profissional de veterinária trabalha tanto quanto um médico, faz plantão como um médico, mas a remuneração não é boa. E isso foi um dos pontos decisivos para eu partir para essa área de segurança de alimentos", explica.

Roberta teve o incentivo do pai para aceitar um estágio dentro de uma fábrica, mas confessa: "Eu pensei em um primeiro momento: frigorífico, é meio macabro, né?'".

"No final, vi como é importante a presença de alguém que garanta que o alimento vai chegar seguro ao consumidor. Eu até converso muito com os açougueiros que trabalham comigo pra que eles lembrem sempre que aquilo que eles lidam é comida e não uma peça de carro."

"Fiquei algumas semanas sem comer carne"

Apesar do amor pelo trabalho que faz, Roberta confessa que demorou algum tempo para se acostumar com o abate dos animais.

Além do estágio, ela decidiu estudar a técnica dos frigoríficos em seu trabalho de conclusão de curso — o que a fez se tornar vegetariana por um tempo.

A veterinária analisou a fase da "insensibilização" — quando o animal é deixado inconsciente e insensível à dor, com uso de um dardo, para que o abate siga sem sofrimento.

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"Eu estudei a qualidade da insensibilização para ver se os animais estavam bem desmaiados. Então eu avaliava se os olhos estavam se mexendo, se ele tinha algum reflexo. Aquilo ali, para mim, foi bastante intenso, o mais extremo que eu fiz. Fiquei algumas semanas sem comer carne"

Com o tempo, a veterinária foi se habituando ao dia a dia na indústria, mas o mesmo não vale para seus amigos e parentes. Muitos deles, segundo ela, "preferem não pensar" sobre o caminho da carne até chegar à mesa.

"Meus amigos acham extremamente estranho: 'Meu Deus, como é que ela trabalha com isso e não se impacta?'. Eu falo para eles que, primeiro, eu não fico o dia inteiro observando abate. E, segundo, lidar com a morte é uma coisa que gera um estranhamento e uma curiosidade, mas alguém tem que fazer esse trabalho. E que bom que tem quem tire proveito disso e não ache uma coisa completamente absurda. No final das contas, se a pessoa não for vegana, de alguma forma ela se beneficia."

Indústria exige veterinários -- mas área não é destaque na faculdade

Apesar de a indústria alimentícia exigir a presença de um veterinário em inúmeros processos, Roberta conta que teve apenas uma matéria sobre o assunto durante a faculdade. Formada em 2020, ela teve que buscar cursos extras para se especializar na área.

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"Tem a matéria de inspeção de alimentos, em que é detalhado que você pode trabalhar com laticínios, com mel, com carnes. Mas é isso, temos uma cadeira em cinco anos de graduação, é só uma pincelada", conta a jovem.

No frigorífico, o veterinário é responsável por criar programas de autocontrole para garantir que o alimento esteja seguro.

Roberta Trevisan, 26, conta que migrou para a indústria das carnes sob incentivo do pai
Roberta Trevisan, 26, conta que migrou para a indústria das carnes sob incentivo do pai Imagem: Arquivo Pessoal

Roberta menciona alguns dos pontos exigidos por esses programas:

Higienização da fábrica. E quais os produtos usados na limpeza do espaço, para não acontecer contaminação.

Hábitos de higiene e saúde dos funcionários, que não podem usar acessórios, ter barba ou usar esmalte e são submetidos a exames periódicos.

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Garantir a qualidade da água usada na carne. Com análise de pH, de cloro, e análises laboratoriais frequentes.

Temperatura da fábrica e do produto. O espaço em que a carne é manipulada tem que ficar entre 0 e 7°C.

Controle de pragas. Já que a empresa tem um cheiro forte de carne, atraente para muitas espécies.

Controle de fraude. As formulações dos produtos são aprovadas pelo órgão fiscalizador, que comanda a lista de ingredientes e a quantidade em que eles podem ser utilizados; vale principalmente para produtos como linguiças e hamburgueres, que passam por mais processos.

Controle de embalagens. Já que o material também entra em contato com o produto.

"Meus amigos perguntam se como a carne que ajudo a produzir"

Além da preocupação sanitária, Roberta destaca que continua lidando com o bem-estar animal, já que é importante para a indústria que os bovinos não passem por momentos de estresse antes do abate — e não só por questão ética.

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"Claro que não é justo que um animal seja maltratado antes de ser abatido, mas também tem a parte da qualidade da carne. Se ele se estressar, a gente pode ter uma carne pálida, e flácida ou uma carne escura, firme e seca. Então acaba sendo também uma preocupação financeira", explica.

A veterinária detalha que o processo é feito da forma mais rápida possível, por mais que funcionários usem choques para levar os animais até o abate. Existe um limite de vezes que o estímulo pode ser usado e o responsável pelo tiro é treinado para fazer o disparo da forma mais eficiente possível.

Hoje, Roberta presta serviços para várias empresas e assina como responsável técnica pelos produtos. E entre suas maiores satisfações está encontrar o próprio nome nas prateleiras dos supermercados.

"É uma área em que eu me dei muito bem. Quando eu encontro meu nome na gôndola eu fico: 'nossa, olha o trabalho que teve para esse produto chegar aqui'. É muito gratificante ver que você está alimentando a população com um alimento seguro"

"Meus amigos também me perguntam: 'Você come nas empresas em que trabalha?'. E claro que sim. Não vou confiar no meu próprio taco?"

E a veterinária garante: não sente saudade alguma de seus dias de estagiária cuidando de animais domésticos.

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"Eu acho que as pessoas têm uma visão, até mesmo os acadêmicos, de que veterinário é uma coisa fofa. Mas não é uma profissão fofa, é uma profissão difícil. Mesmo pra quem trabalha em clínica, tem quem prefira enfrentar os tutores, já eu prefiro onde estou, mesmo lidando com a morte."

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