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Reputação não pode ser comprada. O que o Festival de Cannes está pensando?

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Imagem: iStock
Luiza Amorim

27/06/2019 14h29

Que tipo de organização "promove um mundo melhor"? Uma corporação cujos produtos estão ligados a milhões de mortes todos os anos? Incrivelmente, para o Festival Internacional de Criatividade de Cannes, parece que sim.

O maior evento de publicidade do mundo permitiu que a Philip Morris International tivesse um lugar na seção "Good Track" (linha dedicada a "conteúdos do bem"), ao lado de Greenpeace, ONU Mulheres e Vila Sésamo. A presença da gigante de tabaco em Cannes, também em um painel dentro da programação, faz parte de uma nova e cínica estratégia de relações públicas da companhia para renovar sua reputação maculada.

A empresa quer se reposicionar como uma organização em prol de um "mundo livre de fumo" --apesar de, apenas neste ano, produzir 800 bilhões de cigarros. Isso serve para mascarar o fato de que continua empurrando seus produtos ao consumidor, sobretudo aos jovens, e que prossegue lutando contra políticas comprovadamente eficazes de controle do tabaco.

A Philip Morris (PMI) está no coração de uma indústria cujos produtos vão causar a morte de mais de 7 milhões de pessoas só este ano. No Brasil, o uso do tabaco vai causar mais de 150 mil mortes e vai adoecer 1,1 milhão de pessoas em 2019.

Os danos e custos do uso do tabaco, no Brasil, são notórios. Para se ter uma ideia, a Procuradoria-Geral da República acaba de iniciar uma ação histórica contra a Philip Morris e outras multinacionais de tabaco. O objetivo é recuperar os recursos que o governo gastou com o tratamento de pessoas com doenças relacionadas ao fumo.

"Apoiadores" em Cannes

Para seu painel em Cannes, a Philip Morris levou "apoiadores" pagos, como o cantor Wyclef Jean, para falar ao lado de seus executivos. Além disso, alugou uma casa de praia para uma série de eventos durante a semana do festival.

Mas o glamour do litoral francês não esconde o que acontece nas ruas de São Paulo, Fortaleza ou Brasília: a Philip Morris continua com sua estratégia global de interferir em políticas de controle de tabagismo e promover seus produtos para jovens. O Brasil, inclusive, é alvo principal, já que por aqui a empresa possui 20% do volume do mercado de cigarros.

Relevante ajuda criativa

Mas por que investir tanto em Cannes? Publicidade e marketing agressivos são "a causa da epidemia do fumo".

A Philip Morris precisa da ajuda dos principais criativos do mundo para promover seus produtos. Além dos cigarros, eles também têm novos produtos: os cigarros eletrônicos, que são tão viciantes quanto os normais.

Reação do mercado

Agências de publicidade e empresas que trabalham para o bem social estão reagindo. Um movimento global chamado Quit Big Tobacco juntou um grupo de 250 organizações que se comprometeram a não trabalhar com a indústria do tabaco (ou com as agências de publicidade que trabalhem com ela).

A campanha #WhyCannes (veja o vídeo abaixo), lançada nas redes sociais pela Quit Big Tobacco, esquentou o debate e expôs o óbvio: os criadores de Marlboro não devem estar ao lado dos criadores do Elmo.

Disfarce bem feito?

E está funcionando. O editor da revista americana PRWeek observou que "colocar a PMI no 'Good Track' do programa de Cannes parece equivocado na melhor das hipóteses --e parece potencialmente desastroso para todo o fluxo de conteúdo da seção, na pior das hipóteses".

É uma pena que os organizadores de Cannes tenham deixado se levar pelo disfarce da Philip Morris.

Isso, no entanto, gerou uma oportunidade valiosa para se reconhecer o poder e a importância da publicidade, além de possibilitar que empresas conscientes e agências de publicidade que recusam usar seu talento contra a saúde se pronunciem.

Convido as empresas e agências que compartilham da nossa decepção (e, porque não, indignação) com a presença da Philip Morris na seção de "bem social" do Cannes Lions a se unirem ao movimento "Quit Big Tobacco".

Vamos mostrar à Philip Morris --e também para a organização do festival de Cannes --que a reputação de promover o bem social precisa ser conquistada, e não comprada.