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Estados do Nordeste, Congresso e Supremo não ajudaram no caso da Sputnik

07/05/2021 04h00

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No último dia 26 de abril, a diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu por unanimidade não aprovar o uso emergencial da vacina russa Sputnik V. Depois de acusações irresponsáveis de toda ordem por parte de políticos e do próprio Fundo Russo de Investimento Direto (RDIF), a agência veio a público dar explicações sobre as razões de sua decisão.

Não é difícil encontrar nos meios de comunicação uma série de entrevistas de pessoas da área técnica dando total apoio à decisão da Anvisa. E todas elas caminharam no sentido de que o trabalho da agência foi técnico e realizado de acordo com as informações que receberam. Ou seja, dada a exigência de uma decisão imediata e a ausência de informações, não restou outra alternativa.

Não pretendo aqui, como economista, discutir questões técnicas farmacológicas, mas sim lembrar dois aspectos de fundo econômico que balizaram todo esse processo. O primeiro é o relacionado à própria existência da Anvisa e envolve o conceito de assimetria informacional. Qualquer medicamento (ou mesmo vacina) traz consigo potenciais benefícios e riscos à saúde de quem o utiliza.

Sob o ponto de vista prático, os laboratórios conseguem ter muito mais conhecimentos sobre o que fabricam do que os potenciais usuários ou até mesmo os médicos. E como, por óbvio, seu objetivo principal é maximizar o lucro, podem se sentir induzidos a considerar apenas a relação custo-benefício privado para si próprios; sem observar os efeitos individuais de quem utiliza a medicação e o custo agregado para toda a sociedade.

Nesse sentido, a Anvisa tem um duplo papel. O primeiro é corrigir essa assimetria informacional entre laboratórios e usuários de medicamento, por exemplo, verificando potenciais efeitos colaterais e exigindo que todas as informações sejam disponibilizadas de maneira clara e ostensiva para médicos e pacientes.

O segundo é, no limite, proibir o uso de medicamentos e vacinas que não garantam o mínimo de segurança ou cuja relação custo-benefício não seja positiva para a sociedade. E é neste segundo aspecto que se concentrou a decisão da Anvisa. Com as informações naquele momento, os técnicos da agência entenderam por bem não aprovar o uso emergencial.

Esse aspecto nos leva à segunda questão: a razão de as informações não terem sido adequadamente entregues. Sob o ponto de vista econômico, os incentivos gerados ao longo deste processo dizem muito sobre a razão de termos chegado onde chegamos. Por óbvio, tanto o Fundo Russo, como o próprio laboratório brasileiro que deverá produzir a vacina, a União Química, gostariam de legitimamente rentabilizar o quanto antes os investimentos realizados.

Entretanto, devemos lembrar que essa vacina teve a peculiaridade de ser desenvolvida em país cujo padrão democrático e de transparência é bastante questionado no mundo todo. Ademais, ela teve como "garoto-propaganda" um presidente que tem um apego muito forte ao poder e que é conhecido por usar métodos não ortodoxos para conseguir o que quer, incluindo contra seus opositores.

Foi nesse ambiente que essa vacina foi apresentada, muito mais como um ato político e sem ter sido acompanhada de estudos técnicos transparentes, que pudessem ser verificados por toda a comunidade científica. Por óbvio, gerou uma certa reticência nos meios acadêmicos e seu uso tem se limitado a países cujo padrão de acompanhamento regulatório é menos restrito que o nosso.

Infelizmente parece que o Fundo Russo entendeu que esse mesmo ambiente poderia ser replicado no país e que, por decisões superiores, a Anvisa poderia ser atropelada e a vacina aprovada por meio de pressão política. E de certo modo, uma boa parte dos envolvidos nesse processo deram sinais de que isso, de fato, poderia ocorrer, senão vejamos.

O Consórcio Nordeste, que reúne nove estados brasileiros adquirentes da vacina Sputnik V, fez todo tipo de pressão na mídia e gestão política para acelerar a aprovação do uso emergencial pela Anvisa. O Congresso Nacional embutiu dispositivo legal em uma Medida Provisória estipulando prazo de cinco dias (Definir prazo para Anvisa aprovar vacina é mais grave do que parece) para a agência autorizar temporária para uso temporário de vacinas da covid-19.

Finalmente, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, estipulou prazo até o final deste último mês de abril para que a Anvisa decidisse sobre a "importação excepcional e temporária" de doses da vacina Sputnik V. Ou seja, tudo indicava para o Fundo Russo que o caminho para a aprovação da vacina estava trilhado, sem que fosse necessário esclarecer todos os aspectos solicitados pela agência reguladora brasileira.

Em outras palavras, governadores, Congresso e o próprio Supremo criaram um incentivo ruim para que o Fundo Russo não cumprisse a exigência da Anvisa, indicando que o ambiente decisório russo poderia ser replicado no país apenas por meio do exercício de lobbies. E o pior é que, mesmo depois da decisão da agência, os envolvidos nessa bagunça parecem não ter entendido o recado.

O CEO do Fundo Russo, Kirill Dmitriev, em uma fala no mínimo grotesca, chegou a atribuir a negativa à aprovação emergencial da vacina a questões políticas, inclusive derivada de pressões do governo americano. Numa linha parecida foi o chefe do Comitê Científico do Nordeste, Sergio Machado Rezende, ao também chamar a decisão da Anvisa de política.

Claro que críticas podem ser feitas à Anvisa. Eu mesmo tenho as minhas sobre o excesso de burocracia, em alguns casos, e a sua participação no controle de preços de medicamentos. Mas, neste caso específico, seria muito mais profícuo que a cobrança por celeridade de nossos políticos neste processo fosse direcionada ao Fundo Russo, ao Instituto Gamaleya e à própria União Química.

Afinal, se a vacina Sputnik V é tão eficiente quanto dizem (e, particularmente, não duvido), qual a razão para que os russos não sejam mais transparentes neste processo?