Imposto menor para rico ou Bolsa Família?
O debate sobre a revisão de benefícios fiscais, desonerações, isenções, regimes especiais e incentivos tem de ser enfrentado para valer. Em que pese a existência de bons programas realizados por meio de renúncias de receitas, como a ajuda às Santas Casas, o nível de iniquidade nessa matéria é elevadíssimo.
São benesses de toda sorte, financiadas com dinheiro público, a ocupar o lugar de ações que poderiam reduzir a desigualdade social, aumentar os investimentos ou mesmo amainar a fragilidade fiscal da economia brasileira.
O Ministro da Fazenda Fernando Haddad resolveu abraçar essa agenda, não apenas para ampliar os esforços fiscais, mas também para reduzir a ineficiência da atuação do Estado, que hoje atira uma fábula de dinheiro público pela janela. Sabem quanto? Meio trilhão de reais, como detalharei a seguir.
Pode-se até criticar o método de cálculo usado pela Receita Federal para estimar essas renúncias de receitas públicas, também conhecidas como gastos tributários, mas o fato é que a fatura engordou muito na última década. Se estivéssemos tratando de metade disso, já seria um volume extraordinariamente alto.
São diversas as ações tomadas ou em curso, algumas delas já discutidas por mim neste espaço. Cito, a título de exemplo:
- a Medida Provisória nº 1.185, que acabou com a farra do duplo benefício fiscal associado à subvenção do ICMS;
- a tributação das offshores e dos fundos fechados;
- a obrigatoriedade de contabilizar os créditos de ICMS na hora de descontá-lo da base do PIS e da COFINS;
- a reoneração da folha de pagamentos;
- a mudança em um benefício criado para o setor de eventos (o Perse) na época da pandemia;
- a limitação das chamadas compensações tributárias;
- a reoneração dos combustíveis;
- a mudança na Lei do Carf (tribunal que cuida do contencioso administrativo-tributário em âmbito federal); e
- a alteração no benefício dos Juros sobre Capital Próprio.
Por meio dessas medidas, espera-se recobrar parte da arrecadação perdida, dada a tarefa de entregar um resultado melhor nas contas públicas em 2024. Isso deverá acontecer, como tenho mostrado, mesmo que a tal "meta zero" não seja obtida. Sem ela, entretanto, dificilmente essas ações tomadas até aqui teriam avançado. Ela funciona como espécie de âncora.
O Demonstrativo de Gastos Tributários (DGT), documento que acompanha a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2024, indica renúncias, conhecidas como gastos tributários, de R$ 523,7 bilhões. Destes, apenas 6,3% destinam-se à Assistência Social. É vexatório que o Brasil, um país ainda extremamente desigual, aceite conviver com essa ignomínia.
A lista dos incentivos inclui os mais variados tipos de programas, medidas etc., por exemplo: o Simples Nacional, com R$ 125,4 bilhões; os rendimentos isentos e as deduções do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF), com R$ 84,4 bilhões; a Zona Franca de Manaus, com R$ 32,7 bilhões, os benefícios para o Agronegócio, com R$ 58,9 bilhões; e por aí vai.
Até aqui, o leitor poderia se perguntar: "ah, mas esses programas citados podem ser bons e promover o desenvolvimento, não é mesmo?" Duas respostas possíveis para a pergunta: "Não" ou "não necessariamente". Primeiro, são escassas as avaliações de políticas públicas. Segundo, as já realizadas, a duras penas, não são incorporadas no processo de planejamento orçamentário.
É uma lástima que não se aproveitem os estudos oficiais realizados sobre a desoneração da folha, por exemplo, para subsidiar o encerramento desse programa tão custoso e infrutífero. A exposição de motivos da Medida Provisória nº 1.202, vale dizer, mencionou essas avaliações, mas o Congresso parece ainda sensibilizado pelos argumentos de parte do setor produtivo. Se o tema for judicializado, não tenho dúvida, a desoneração cairá.
Olhem o artigo 30 da Emenda Constitucional nº 103. Ele proíbe expressamente contribuições para o financiamento da previdência social cuja base não seja a folha. Isto é, a Lei nº 14.784, que vigora desde a decisão do Congresso de derrubar o veto presidencial, é flagrantemente inconstitucional. Aliás, duplamente, porque também não é acompanhada de medidas compensatórias, como manda a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101), no seu artigo 14.
Voltando à análise dos demais gastos tributários, um dado que sempre me impressiona (e ele cresce a cada ano) é o volume de imposto de renda não arrecadado, em razão das deduções de despesas médicas. Para 2024, esse número já está em R$ 27,9 bilhões.
Não há limites, vale dizer, para essa modalidade de dedução, que só beneficia os mais ricos. Para ter claro: uma consulta médica na clínica mais cara de São Paulo, desde que se emita a nota fiscal nos termos da lei, conta para essas deduções. É só informar na Declaração Completa do IRPF. Qual o sentido disso? Sentido nenhum. É dinheiro público escoando pelo ralo. Na verdade, indo para os bolsos de quem não depende do Estado, mas usufrui da benesse.
Se acabássemos com esse gasto tributário e com as deduções de despesas de educação no Imposto de Renda (R$ 5,3 bilhões), caros leitores, o déficit primário (receitas menos despesas sem contar os juros da dívida pública) poderia ficar em torno de 0,5% do PIB, em 2024, e não em 0,8% do PIB, como projetamos atualmente na Warren Investimentos.
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Quero receberReduzidos modestos 5% de todo o restante de gastos tributários, sem exceções, conseguiríamos mais um ajuste de -0,2% do PIB nessa projeção. Dessa maneira, o governo estaria bem perto de cumprir a meta de déficit zero para o ano corrente, respeitada a banda inferior de -0,25% do PIB.
Não é curioso que muitos se preocupem com o tamanho do gasto previdenciário, de fato bastante elevado, mas ignorem o gasto tributário? Preocupam-se com o salário do servidor público, mas ignoram a transferência camarada para o bolso do rico. Gostam de bater no Benefício de Prestação Continuada (BPC) ou no Bolsa Família, mas na hora de falar da desoneração da folha... Ah, aí vale o ditado: "farinha pouca, meu pirão primeiro".
Segundo o DGT, a arrecadação bruta total prevista para 2024 é de R$ 2,5 trilhões. Logo, os gastos tributários representam pouco mais de 1/5 do bolo de receitas. São recursos preciosos deixados sobre a mesa, que poderiam servir ao financiamento de políticas públicas com impacto direto na vida das pessoas.
Para fins de comparação, o orçamento do Programa Bolsa Família, que é bem avaliado, com diversos estudos e análises acadêmicas publicados sobre seus efeitos na desigualdade, está fixado em quase R$ 170 bilhões para 2024. Isto é, as renúncias tributárias correspondem a mais de três vezes o orçamento anual do Bolsa Família!
Até os parlamentares saem-se "mal" nessa comparação com o gasto tributário, mesmo depois de terem turbinado suas emendas no Orçamento de 2024. As emendas parlamentares individuais, de bancada estadual e de comissão correspondem a 10% da renúncia tributária estimada para 2024.
Querem mais uma comparação? Os investimentos do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), principal iniciativa do governo na área de investimentos, representam 11,5% das desonerações, isenções, regimes especiais, deduções, incentivos e congêneres.
É preciso escancarar de vez esse disparate, para que haja a devida mobilização em torno do tema. Se seguirmos quietos, os beneficiários continuarão a se refestelar, devorando suas generosas fatias do bolo sem qualquer chateação.
No livro que organizei, em 2020, com Josué Pellegrini - "Contas públicas no Brasil" (Editora Saraiva/IDP), há uma evidência importante sobre como o Estado brasileiro gasta mal. No capítulo escrito por Pedro Jucá Maciel e Guilherme Ceccato, vê-se que o Brasil possui o maior nível de desigualdade de renda medida antes da atuação do Estado, em um grupo com quase quarenta países analisados.
Após contabilizadas as transferências, gastos e renúncias tributárias, por meio dos quais o Estado realiza suas políticas públicas, direta ou indiretamente, a desigualdade do Brasil, como de todos os outros países analisados, diminui. Contudo, continuamos em primeiro lugar na competição neste segundo ranking.
Portugal, por exemplo, que está entre os quatro mais desiguais antes de contabilizadas as transferências e renúncias, passa a ser o 13º mais desigual, melhorando sensivelmente sua posição relativa. É curioso como o Brasil, de fato, gasta pessimamente os recursos arrecadados da sociedade.
No mesmo capítulo, vemos que 30% do gasto público destinam-se aos 10% mais pobres e pouco mais de 20% para os 10% mais ricos, o topo da pirâmide. No Reino Unido, quase 95% destinam-se aos 10% mais pobres, enquanto cerca de 2% vão para os 10% mais ricos. Em Portugal, 65% e 15%, respectivamente, para os mais pobres e os mais ricos.
Os grupos de interesse estenderam seus tentáculos sobre os orçamentos públicos e não os retiram nem sob reza brava. São providos de ventosas com propriedades de Durepoxi, sabem como é?
Quando um gestor público como o Ministro Fernando Haddad resolve confrontar esses privilégios, os donos do Poder passam a mover mundos e fundos. Azucrinam desde a cúpula do Legislativo até os deputados do baixo clero, passando por parte dos formadores de opinião, dos prefeitos e governadores. Não brincam em serviço.
Em 2022, quando à frente da Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo, deparei-me com um número elevado de benefícios fiscais do ICMS. Eles se avolumaram, aliás, em meio à guerra fiscal travada entre os Estados, esta que seguirá firme mesmo após a promulgação da Emenda Constitucional nº 132 (reforma tributária), não custa lembrar.
Em termos de volume financeiro, era uma fatia representativa do Orçamento do Estado. O que eu fiz? Reestruturei o Departamento de Estudos de Política Tributária, sob o guarda-chuva da Subsecretaria da Receita Estadual, e criei um cronograma de ações. O primeiro passo foi a proposição e a elaboração de indicadores para avaliar os incentivos em vigor e estabelecer critérios para novas concessões. Também avançamos na normatização dos processos internos, dando maior previsibilidade e transparência a esse périplo pelo qual cada pedido do setor produtivo passa quando começa a tramitar na Secretaria.
Tudo isso foi apresentado ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) de São Paulo, indicando nossa disposição em avançar a sério no assunto por meio de ações concretas no tratamento das renúncias tributárias. Agora, não pensem que mexer nesse vespeiro é trivial. Longe disso.
Não vejo, aliás, as políticas de incentivo como decisões ruins, necessariamente. Isto é, em qualquer contexto e sob quaisquer condições e parâmetros. Mas entendo que devem, sempre, ser avaliadas, para que o dinheiro público não seja jogado para o ar.
A situação atual, no caso do governo federal, chegou a um limite perigoso. São três programas Bolsa Família para bancar os gastos tributários totais. Faz sentido? Perguntaram para o povo? Está na hora de os parlamentares cuidarem mais dos interesses dos seus eleitores, sobretudo daqueles que mais dependem da ação do Estado.
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