Felipe Salto

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Opinião

O avanço silencioso da 'Agenda Tebet'

O Brasil adota o modelo de "orçamento-programa", como é conhecido na literatura, baseado em classificações funcionais programáticas, que se desdobram em ações orçamentárias, distribuídas regionalmente. Por exemplo, o gasto com aposentadorias e pensões pagas pelo INSS classifica-se na função "Previdência Social", no programa "Previdência Social: Promoção, Garantia e Direitos da Cidadania", com a maior parcela alocada na ação "Benefícios Previdenciários".

Mas, em que essa informação auxilia o gestor público ou o político na tarefa de planejar o futuro do país, escolhendo a melhor distribuição dos recursos arrecadados?

Essa pergunta levou a que a lógica do chamado "orçamento por resultados" passasse a ser muito debatida na literatura acadêmica e na prática orçamentária e fiscal de diferentes países. Isso já há algum tempo. O estudioso mais famoso do tema é o professor da Universidade de Maryland, Allen Schick, que já visitou e conhece bem o Brasil.

Schick esteve no Tribunal de Contas da União há alguns anos e conversou com técnicos experientes de Brasília, acadêmicos e profissionais da área de contas públicas. Certa vez, em 2017, em um evento organizado pelo Wilson Center, think tank sediado em Washington com um braço dedicado a estudar o Brasil, fui convidado a apresentar sobre a situação fiscal brasileira e a recém-criada Instituição Fiscal Independente (IFI).

No mesmo seminário, estava presente o Professor Schick. Ele gostou de algo que falei sobre a necessidade de, no Brasil, gastarmos menos tempo com discussão de regras, legislações e normas e mais com estratégias para espalhar na sociedade o "espírito da responsabilidade fiscal".

Ele dizia que tínhamos boas regras e que o nosso problema era mesmo de execução e rigidez orçamentária excessiva. Schick tem uma provocação que acho muito boa: o Plano Plurianual (chamado PPA) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) são, na verdade, dois orçamentos e o país precisa escolher um deles. De certo modo, essa provocação é muito útil, de fato, para pensarmos uma reforma fiscal a valer.

A ministra Simone Tebet e sua equipe, ao longo de 2023, promoveram avanços relevantes na matéria orçamentária. Quero destacá-los. Leany Lemos, Secretária Nacional de Planejamento de Tebet, é muito experiente e conseguiu mudar a cara do PPA já na sua primeira grande tarefa. Basta dar uma passada de olho nos documentos disponíveis neste link. Além disso, a ideia de visitar todo o país em busca de sugestões para o plano foi muito boa, a meu ver, porque mobilizou a opinião pública em torno de um tema relegado a último plano de uns tempos para cá. Foi o que Tebet denominou "PPA Participativo".

Mas quero me ater mais às mudanças de forma e conteúdo que identifiquei no PPA de 2024 a 2027, para depois indicar alguns caminhos novos. Antes, lembro que o PPA, assim como a LOA e a LDO, é uma lei. O Executivo tem de enviar um projeto, que é então apreciado e aprovado pelo Congresso Nacional. Nele, devem constar programas, diretrizes, objetivos, metas e indicadores de resultado para quatro anos à frente, sempre contados a partir do segundo ano do mandato presidencial. O Presidente Lula, assim, apresentou seu PPA para a partir de 2024, deixando já contratados os compromissos até o primeiro ano do próximo mandato presidencial, independentemente do (a) eleito (a).

As inovações trazidas por Tebet, Lemos e equipe começam pela fixação de indicadores-chave, em âmbito mais geral, ou estratégica, com base em indicadores conhecidos, passíveis de acompanhamento e públicos.

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Cada um deles é apresentado sob duas trajetórias até 2027, sendo uma denominada cenário base e a outra de desejável. Por exemplo, no Eixo 1 do PPA - Desenvolvimento Social e Garantia de Direitos, há 31 indicadores-chave, a exemplo da taxa de mortalidade infantil neonatal, do Ideb para o ensino médio, da proporção da população vivendo em domicílios precários, dentre outros. Essa inovação é fundamental para que o PPA seja visto como um programa de médio prazo, de fato, a partir do qual o país pode atingir objetivos gerais em áreas essenciais relacionadas a todos os programas orçamentários, hoje meras rubricas contábeis.
O orçamento-programa pode, a partir dessa inovação, avançar para o chamado "orçamento de resultados", como parece ter sido, aliás, a ideia original dos constituintes de 1988. Afinal, o PPA é um conceito moderno para a época, sobretudo no modelo que expliquei acima, com metas específicas, indicadores e monitoramento.

A questão é que essa etapa do processo orçamentário acabou ficando em último plano, nas atividades da área econômica dos diferentes governos, desde 1989, porque a disputa pela divisão do bolo arrecadado não se dá ali. O locus da partilha é a LOA e, mais especificamente, a despesa discricionária, onde se enfiam os cerca de R$ 50 bilhões de emendas parlamentares.

Como mudar essa lógica?

O fato é que o PPA, sim, é publicado com uma porção de programas finalísticos, que se desdobram em objetivos e diretrizes, para os quais se estabelecem metas e indicadores para medição do seu alcance. Contudo, em muitos casos, os indicadores são ruins, pouco claros ou meramente indicativos, muito gerais. Em outros, fixam-se metas ligadas à própria elevação do gasto (aumentar a despesa em X%, por exemplo), e não ao resultado da política pública.

Aqui, veio um segundo avanço da Secretária Leany Lemos. Na pasta de arquivos públicos, no site do Ministério do Planejamento e Orçamento, para o PPA de 2020 a 2023, podemos checar os programas, diretrizes, objetivos, metas e indicadores à época estabelecidos. É nítida a evolução quando comparados aos do PPA mais recente.

Enquanto, no anterior, ocorria o que descrevi acima no caso de muitos programas finalísticos, no novo houve o cuidado de um detalhamento notável de cada iniciativa. Pode ainda melhorar muito, mas o avanço não se discute. Passou-se a apresentar, também, a regionalização do gasto programado. Além disso, os indicadores foram todos escrutinados e revistos, o que vai certamente melhorar a atividade de monitoramento e avaliação ex post.

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Aqui, registre-se uma outra inovação. A Ministra Tebet congregou as atividades de avaliação de políticas públicas numa Secretaria de Avaliação, que incorporou o antigo CMAP. Este, vale dizer, que é um núcleo de avaliação em atividade já há alguns anos, tendo publicado estudos e relatórios sobre diversos programas orçamentários, mas não incorporado ao processo de elaboração da LOA.
Não adianta avaliar e monitorar apenas para publicar números e percentuais no site oficial do governo. Essas duas atividades devem ter a finalidade de melhorar os resultados em termos de políticas públicas ofertadas à população. As avaliações precisam subsidiar, também, uma segunda mudança necessária na LOA e no PPA: a redução de programas inúteis ou ineficientes. O instrumento mais poderoso para isso é ter à mão boas avaliações.

O monitoramento hoje realizado (ver, por exemplo, os relatórios disponibilizados pelo Planejamento referentes ao PPA de 2020 a 2023) acaba tendo pouca utilidade. De que adianta dizer à sociedade, aos gestores, à imprensa, ao Congresso e a todos que o programa da previdência foi plenamente executado? Bem, estranho seria se esses recursos não tivessem sido transferidos para os seus beneficiários, não é mesmo?

Agora, interessa mais, claro, saber se a primeira etapa de uma obra programada foi executada plenamente ou parcialmente e as razões do sucesso ou do fracasso. Interessa, igualmente, saber se o gasto previdenciário está produzindo determinados efeitos sobre a desigualdade, sobre alguns dos indicadores-chave estabelecidos na dimensão estratégica do PPA etc. Também queremos conhecer se o tipo de gasto realizado na educação, por exemplo, tem gerado aumento na nota do Ideb para os estudantes do ensino médio, e não apenas se foram construídas X ou Y escolas novas em relação ao programado.

A minha principal sugestão para o PPA e a LOA, que quero desenvolver num próximo artigo, é fundi-los, na prática, mas transformando (e não eliminando) o PPA.

É assim que tenho refletido sobre aquela provocação do professor Allen Schick. A elaboração da LOA tem de levar em conta, obrigatoriamente, o plano de voo estabelecido no PPA. Não pode ser o oposto, isto é, o PPA ser revisado para contemplar os anseios e improvisos de curto prazo da LOA. Evidentemente, não se pode imaginar um processo rígido, que amarre as mãos dos gestores e dos políticos, o que seria péssimo para a boa alocação dos recursos e prejudicaria, pelos efeitos simétricos e opostos, a gestão.

O que imagino é um mini processo de PPA, todos os anos, na discussão da LOA. Discutir os indicadores-chave, observar os relatórios de monitoramento exarados até aquele momento e levar em conta a distância entre o cenário desejável e os dados realizados. Quando possível, escrutinar também cada uma das metas de cada programa finalístico, segundo os indicadores fixados lá no PPA.

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Não é um burocrata isolado no ministério do Planejamento que deve fazer tudo isso, produzindo calhamaços de relatórios para publicação em sites que não serão acessados. A atividade do burocrata — aliás, Brasília está recheada de profissionais competentíssimos na seara fiscal e orçamentária — deve ser combinada à do político.

O orçamento é vivo, na verdade, e o PPA precisa ser tratado, ano a ano, a sério, numa discussão aprofundada comandada pelo Executivo, com a participação direta do Legislativo. Neste caso, além do incentivo natural de melhorar o planejamento e colaborar para o desenvolvimento de médio e longo prazo, seria importante prever outras amarras. Por exemplo, um dispositivo muito simples, na Constituição, obrigando ao procedimento proposto acima, ano a ano.

Talvez, até possamos imaginar uma maneira de promover isso por lei complementar, dada a inovação já promovida pela Emenda 109. A propósito, uma última mudança a ser enaltecida é a previsão do marco fiscal de médio prazo na Lei Complementar nº 200/2023, outro gol da ministra Tebet e de sua equipe. O marco fiscal de médio prazo é a base para se ter um bom planejamento. Tudo que discutimos neste artigo se desmancha no ar sob cenários fiscais e econômicos não fidedignos, excessivamente otimistas.

Como podemos ver, o tema é fascinante e demandará ainda muitos passos, mas é preciso reconhecer: avança silenciosamente a "Agenda Tebet". O professor Schick ficaria feliz em saber que estamos espalhando o espírito da responsabilidade fiscal.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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