Felipe Salto

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Opinião

O déficit público ainda será um desafio gigante em 2024

O governo federal tem um desafio gigantesco pela frente em 2024. No ano passado, o Ministro Fernando Haddad conseguiu aprovar projetos importantes no Congresso, a exemplo do fim da subvenção baseada em benefícios fiscais do ICMS, que erodia fortemente as receitas públicas. Por ora, conseguiu também reverter a prorrogação intempestiva da desoneração da folha, além de ter aprovado mudanças importantes para o Carf (tribunal que cuida do contencioso entre os contribuintes e o Fisco) e uma boa legislação para tributar os fundos fechados e os ativos dos brasileiros no exterior.

Contudo, o desafio é ainda muito grande, quando vamos aos detalhes do caminho a ser pavimentado para atingir a chamada meta zero para o déficit público. O déficit, se tudo correr bem, deve ser de 0,8% do PIB neste ano. O problema é o "se tudo correr bem". Como diz um amigo: o "se" não é um jogador que se costuma escalar.

As receitas líquidas devem atingir, pelas nossas projeções na Warren Investimentos, R$ 2.567,9 bilhões (ou 22,3% do PIB). Líquidas das transferências a Estados e Municípios, ficarão em R$ 2.059,7 bilhões (ou 17,9% do PIB). Em relação a 2023, um avanço de 4,4% em termos reais. Nessa dinâmica, já consideramos um bom volume de receitas novas, derivadas de todas as medidas que o Governo Lula aprovou no Congresso até o fim do ano passado. Contudo, somos mais conservadores em relação aos efeitos agregados na arrecadação. As medidas, no conjunto da obra, devem colaborar com R$ 91,8 bilhões ou 0,82% do PIB (já computada a reoneração dos combustíveis, de quase R$ 24 bilhões).

A receita líquida projetada na Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2024 está R$ 132,3 bilhões acima da nossa estimativa. Do lado da despesa, o governo espera um gasto R$ 38 bilhões mais alto que o nosso. Assim, grosso modo, se houvesse um contingenciamento dessa magnitude e as receitas de R$ 132,3 bi não entrassem em 2024, o governo apresentaria um déficit primário de R$ 90,9 bilhões ou 0,8% do PIB, que é exatamente nossa projeção. Como o governo tem receitas maiores, na LOA, então projeta um resultado próximo de zero (cumprindo a meta zero sem usar a banda de -0,25% do PIB).

É possível que a dinâmica das receitas surpreenda? Sim! Minha avó dizia, no seu otimismo característico: "impossível é Deus pecar". Mas, as receitas só poderiam assumir um ritmo melhor que o esperado se duas coisas acontecessem, conjunta ou isoladamente: a) um desempenho econômico melhor que o projetado neste momento; e b) uma dinâmica arrecadatória acima da esperada para as medidas lançadas em 2023, as chamadas ações para recuperação de receitas.

Em janeiro, quando tomamos os dados preliminares divulgados no sistema SIGA-Brasil, do Senado Federal, que reproduz o SIAFI (sistema do governo federal para congregar todas as ordens bancárias realizadas, mas de acesso restrito), há boas notícias. A receita total deve ter encerrado o primeiro mês do ano em R$ 278,6 bilhões, o que representaria um crescimento real de 3,7% em relação a janeiro de 2023 (R$ 258,4 bilhões).

Contudo, apenas por hipótese, vamos assumir que esse desempenho se mantivesse exatamente igual para todos os meses de 2024. Essa alta real ao redor de 4% é mais baixa que a nossa projeção, na Warren, para a receita total, de alta real de 5,1%. Portanto, o desempenho de janeiro está longe de ser motivo de tranquilidade para os gestores da política fiscal.

Não há nada de extraordinário, como se vê, apesar de ser positivo, é claro, verificar que a arrecadação parece seguir um bom desempenho, em linha com o que ocorreu no fim de 2023.
O caminho a ser pavimentado na política fiscal é conhecido. Primeiro, porque ele é marcado pela apresentação de relatórios bimestrais obrigatórios. Segundo, porque o périplo ficou ainda mais claro com a aprovação da Lei Complementar nº 200, de 2023 (Lei do Arcabouço Fiscal). Terceiro, porque a lógica de indicar cumprimento de metas e mostrar os esforços compatíveis segue a mesma de sempre.

O primeiro relatório bimestral deverá ser apresentado no final de março. Nele, o governo já terá informações consolidadas sobre a arrecadação e as despesas primárias do primeiro bimestre. Também saberá, pela própria Receita Federal, a dinâmica da arrecadação de mais de 90% do terceiro mês do ano. Bem, ali, será preciso mostrar algo fundamental: a projeção atualizada para o déficit primário e a distância entre esse valor e a meta zero ou, sendo mais preciso, entre esse valor e o percentual de -0,25% do PIB, considerando-se a banda da meta zero.

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Se a arrecadação de janeiro e fevereiro apresentar bom desempenho, o governo até poderá manter o cenário da Lei Orçamentária Anual (LOA), indicando, assim, cumprimento da meta (com banda), apostando num desempenho melhor para março a dezembro. Isto é, esse primeiro teste me parece mais fácil de se superar. Mas, mesmo assim, caberá uma decisão importante, já naquele momento: contingenciar o máximo permitido por lei, um percentual desse limite ou zero? Aliás, o máximo permitido por lei será o da LDO?

A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2024 traz um elemento preocupante, a partir de uma ideia que, a meu ver, como já mostrei neste espaço, contraria o espírito da Lei Complementar nº 200. A saber, ela autoriza um corte que produza, ao fim e ao cabo, uma dinâmica de crescimento real de, no mínimo, 0,6% para a despesa. Esse corte máximo, pelas nossas contas, seria de R$ 26,7 bilhões. Contudo, a Lei Complementar nº 200 diz outra coisa: manda cortar 25% de toda a discricionária, o que dá o dobro desse valor. Dizem que o TCU não vai implicar com essa inconsistência entre LDO e Lei Complementar, mas, vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos.

Bem, se o governo apresentar uma projeção de resultado primário irrealista, em março, com base na dinâmica arrecadatória de janeiro e fevereiro, sustentando o cenário turbinado de arrecadação trazido na LOA, ele tenderá a contingenciar pouco ou nada naquele momento. Um erro, a meu ver, pois isso estimulará uma liberação mais acelerada de despesas discricionárias, até maio, quando do segundo momento de apresentação de projeções (publicação do segundo relatório bimestral de avaliação do orçamento).

O governo deveria, de saída, congelar os R$ 26,7 bilhões. Com isso, pelas nossas contas, seria possível entregar um déficit primário de 0,8% do PIB, em 2024, bem melhor que o apresentado em 2023, mesmo se abatidas as despesas com precatórios extras. Entretanto, este seria um quadro de rompimento de metas, evidentemente, o que ensejaria, no tempo certo, o acionamento dos gatilhos legais.

Além dos R$ 26,7 bilhões, o governo ainda teria uma carta na manga. O Congresso elevou as emendas de comissão a um patamar historicamente alto. Mesmo após o veto presidencial, de R$ 5,6 bilhões, as emendas parlamentares de comissão estão programadas em R$ 11 bilhões. Como essa despesa não é mandatória, o governo poderá fazer ajuste em cima disso, segurando a liberação de recursos na "boca do caixa".

É, aliás, o que eu recomendo. Feita essa economia adicional, o déficit primário poderia ficar um pouco melhor, em torno de 0,7% do PIB.

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Em maio, na apresentação do segundo relatório bimestral, já conheceremos um terço das informações do ano de 2024, tanto para receitas como para despesas. Será difícil para o governo repetir a estratégia que eventualmente tenha utilizado em março, como expliquei.

Se a dinâmica do quadrimestre apontar para um primário pior que o limite inferior (de -0,25% do PIB, cerca de -R$ 30 bilhões), o governo terá de indicar, no relatório, ao menos dois pontos importantes. Não só o máximo contingenciamento possível precisará ser mostrado, como também o cenário de acionamento de gatilhos em fevereiro 2025 (no caso das medidas de ajuste do artigo 167-A da Constituição) e em 2026 (no caso do limite de gastos crescendo a uma taxa mais baixa, de 50% vezes a variação da receita, e não de 70%).

A esperança da equipe econômica é que as medidas adotadas no ano passado surtam efeito mais intenso do que o previsto pelo mercado neste momento. Além disso, fala-se em mais ações, que poderiam sair da agenda estrutural, como sabemos, sempre mantida em modo atualizado nos escaninhos dos competentes técnicos do alto escalão da Secretaria da Receita Federal. Seja como for, a pressão da ala gastadora do governo e do Congresso para mudança de meta será gigantesca, em março, mas principalmente a partir de maio.
Haddad precisará resistir, pois disso depende a credibilidade do novo arcabouço, o recém-nascido regime aprovado para as contas públicas brasileiras.

Se a arrecadação não reagir como esperado pela equipe econômica, então só restará fazer valer o ajuste por meio do Plano B introjetado na própria regra fiscal. Parta ter claro, o governo terá de bancar o acionamento dos gatilhos. Num primeiro momento, apenas indicar que serão acionados. Mas isso já será importante para terminar de pavimentar o caminho da política fiscal em 2024 e fazer a transição para 2025 sem grandes tropeços.

O mal a ser evitado, vamo-nos entender: mudar a meta de 2024. O zero não é, nem de longe, um número mágico. Mas, sem dúvida, é uma âncora para este momento inicial, em que o Novo Arcabouço Fiscal ainda está aprendendo a engatinhar e ensaia suas primeiras palavras. Que não sejam elas: "contabilidade" nem "criativa". É a nossa torcida; é a nossa esperança.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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