O pepino da dívida dos Estados
Na semana passada, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva visitou o governador Eduardo Leite, no Rio Grande do Sul. Leite quer uma solução para a dívida do seu Estado. Na mesma semana, o governador Tarcísio de Freitas esteve com o ministro Fernando Haddad para tratar da dívida de São Paulo. Por que essa questão é central para o desenvolvimento econômico nacional?
A Dívida Consolidada Líquida (DCL) do Rio Grande do Sul encerrou 2023 em R$ 104,9 bilhões ou 185,2% da Receita Corrente Líquida (RCL), segundo dados do Tesouro Nacional. A de São Paulo, em R$ 293,5 bilhões ou 127,8% da RCL. A saber, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF - Lei Complementar nº 101/2000) determina um limite de 200% para esse indicador.
Em 2020, a DCL do Rio Grande do Sul estava em 221,7% da RCL e, em 2017, em 218,9%. No caso de São Paulo, respectivamente, em 166,4% e 171%. Em que pesem os dados melhores, de lá para cá, são situações bastante distintas e que traduzem muito bem a dificuldade de tratamento dos temas federativos no nosso país.
São Paulo tem um PIB equivalente a quase cinco vezes o do Rio Grande do Sul. A tração das receitas é maior, no primeiro, do que no segundo, dada a concentração da atividade econômica em solo paulista. Quando tomamos os dados dos estados das demais regiões, as disparidades são ainda maiores. No entanto, todos os Estados recebem o mesmíssimo tratamento em termos fiscais.
Não se deve negar o avanço representado pela Lei n.º 9.496/1997 e pela própria LRF, já nos 2000. Contudo, é difícil imaginar um tratamento justo nas questões fiscais, de dívida pública, sobretudo quando se observa a carência de investimentos agregados no país, sob regras que não diferenciam os Estados quanto às suas especificidades e capacidades.
Por que todos têm de seguir um limite de 200% da RCL, por exemplo? Há muitos Estados com menos de 40% de dívida e que não verão o indicador subir por anos e anos. Nesse aspecto, a LRF, que completará 24 anos em maio do corrente, precisa ser aprimorada, ao lado de uma reforma ampla da Lei de Finanças Públicas, a de n.º 4.320, de 1964.
Vejam um exemplo de maluquice em vigor no nosso país. São Paulo precisa da bênção do Tesouro Nacional para fazer uma operação de financiamento para o metrô, por hipótese, com um banco de desenvolvimento estrangeiro, mesmo tendo renda, receita e riqueza a justificar um quadro de evidente tranquilidade para a solvência do seu setor público. Isso beira ao surrealismo.
A capacidade econômica é muito elevada em um estado como São Paulo; não se questiona. Classificar sua dívida como "alta" e atribuir classificação "B" ao Estado como decorrência desse fato (nas notas dadas aos entes subnacionais pelo Tesouro) não tem cabimento.
Esse raciocínio é limitador do crescimento econômico integrado, do investimento e do emprego. Quem tem condições relativas e absolutas melhores deve ter maior capacidade para se endividar. Ora, alguém vai dizer que o Japão é um país mais arriscado que o Brasil por apresentar dívida pública duas vezes e meia maior? Sua renda per capita é muito mais elevada e a capacidade de gerar renda e riqueza, consequentemente, bem mais alta. Logo, os riscos de solvência, lá, são muito menores do que aqui.
A tentativa de renegociação da dívida, no Rio Grande do Sul, para citar o exemplo desta semana, e a conversa do Governador de São Paulo com o Ministro da Fazenda para discutir a indexação da dívida são faces da mesma moeda. O problema é um só: temos de formular um plano fiscal federativo à altura dos desafios do país.
De um lado, os Estados com menor capacidade produtiva, mão de obra menos qualificada e infraestrutura pior devem ser apoiados por programas e políticas públicas adequadas. Não se trata de aumentar repasses de recursos do Fundo de Participação. Desse mato não sai coelho. Nada disso.
Trata-se de melhorar o uso dos recursos já repassados, direcionando-os a iniciativas que ampliem o potencial produtivo e econômico das regiões menos desenvolvidas. Equilibrar os contratos para garantir regras adequadas de indexação da dívida assumida lá atrás é fundamental, igualmente. O binômio da discussão deveria ser: responsabilidade fiscal e investimento produtivo.
De outro lado, os Estados mais ricos devem ter maior liberdade — e assumir os devidos custos e riscos — para gerenciar sua vida fiscal e financeira. São Paulo poderia promover ainda mais investimentos do que nos últimos trinta anos.
O desenvolvimento integrado do país requer inventividade e responsabilidade. Uma ou outra, separadamente, não resolvem. A dívida dos Estados é um pepino gigantesco e sua casca é mais áspera do que aparenta à primeira vista.
Essa dívida originou-se das renegociações dos anos 1980 e 1990. O compromisso assumido, pelo lado dos entes subnacionais — venda de bancos estatais estaduais; ajuste fiscal, sob as regras da LRF; e controle da dívida —, fez efeito, mas acabou por jogar fora o bebê com a água suja do banho.
O ajuste mais duro e a limitação da dívida eram instrumentos evidentemente inescapáveis, lá atrás, para sanear as contas e a bagunça fiscal que o ex-ministro Antônio Delfim Netto já projetava, nos anos 1970, ao criar o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). Vejo que estamos em um novo momento de construção, nesse aspecto.
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Quero receberTratar a todos da mesma maneira é burrice e limita o crescimento integrado do país. No bojo de uma reforma orçamentária e dos instrumentos de planejamento econômico e fiscal, temos de discutir a federação a sério. Além disso, já chega de esperar crises federativas, como a que ora se avizinha, para avançar com medidas destrambelhadas e emergenciais.
A síntese — e o tema não se esgota aqui — é que temos de olhar para além dos números da dívida e entender o que representam, em cada realidade. Estados com dívida e investimento baixos, por exemplo, indicam situações mais desejáveis do que estados com dívida alta e investimentos igualmente turbinados? Não.
Um modelo fiscal federativo 2.0 precisa ser gestado para endereçar essas questões. Se a LRF e a Lei nº 9.496/1997 representaram avanços, chegou a hora de avançar mais. Os movimentos de dois governadores de peso, como o do Rio Grande do Sul e o de São Paulo, podem ensejar o início de um bom debate nessa direção.
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