Uma chance de ouro à responsabilidade fiscal
O encaminhamento do nó da desoneração da folha de pagamentos, após a judicialização promovida pela União, pode resultar em uma boa limonada, mesmo a partir dos azedos limões originais. Espero que o Legislativo e o Executivo acatem os princípios da responsabilidade fiscal contidos na decisão do ministro do STF Cristiano Zanin.
A desoneração da folha de pagamentos é sempre cogitada como uma medida para gerar empregos e elevar a renda das famílias. Ao contrário, os estudos importantes publicados pela academia, por técnicos independentes e por servidores públicos trouxeram outro tipo de evidência. A política adotada no Brasil foi ineficiente. Mesmo assim, seguimos jogando dinheiro público pela janela.
O presidente Lula, corretamente, vetou a prorrogação do programa de desoneração aprovado pelo Congresso Nacional, no ano passado, que optou por derrubar o veto. Obviamente, a queda do veto é um resultado possível dentro do espectro de possibilidades postas pelas regras do jogo democrático.
A questão é que a decisão dos parlamentares promoveu uma legislação inconstitucional, como mostrei nas minhas colunas neste espaço. Vale repetir: o regramento aprovado fere a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000), que no seu artigo 14 obriga à compensação de medidas com efeito fiscal.
A medida ainda confronta o artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), introduzido pela Emenda Constitucional nº 95/2016, que determina que todas as propostas legislativas sejam acompanhadas de cálculo de impacto fiscal e orçamentário. Terceiro, a prorrogação do regime de contribuições baseadas no faturamento das empresas para o financiamento da Previdência Social também é inconstitucional, desde a promulgação da emenda da Reforma da Previdência.
O ministro Zanin destacou o artigo 113 do ADCT, é verdade, que é bastante claro quanto à necessidade da explicitação do cálculo do impacto orçamentário da desoneração da folha de pagamentos. Não fizeram a conta, tampouco apresentaram como seria paga.
Simplesmente aprovou-se a medida. A fatura, pasmem, foi devidamente espetada no Tesouro Nacional, sem qualquer previsão de fonte pagadora no Orçamento público. Como pode uma despesa nova, no caso, uma renúncia tributária, também chamada "gasto tributário", ser aprovada sem que se aponte o recurso? Não pode, na verdade. Aí é que está o nó.
Por isso, a meu ver, o ministro Zanin, que foi rapidamente seguido por diversos de seus pares (até que adviesse o pedido de vistas do ministro Luiz Fux), destacou também a sustentabilidade fiscal, princípio constitucional introduzido pela Emenda nº 109. Ele mostrou que as decisões de políticas públicas e os projetos de lei e medidas aprovadas pelo Congresso não podem perder de vista esse princípio de equilíbrio intertemporal das contas públicas.
A verdade é que o equilíbrio orçamentário está no coração da Constituição Cidadã desde a sua concepção. O Capítulo de Finanças, Tributação e Orçamento está fundamentado nessa lógica. As receitas e as despesas têm de se comportar de modo que, em relação ao desempenho da economia, produzam saldos compatíveis com a evolução de uma dívida pública equilibrada. Tanto é assim que a própria ideia de limitações para o endividamento já estava contida no texto original da Carta Magna. Claro que a literatura orçamentária e de teoria macroeconômica se modernizou, de lá para cá, mas a essência é a mesma e já estava ali contida.
Por essas razões, a interpretação da decisão do Zanin tem de levar a um acordo, entre o Legislativo e o Executivo, que considere não apenas o texto do artigo 113 do ADCT, ipsis literis, mas, de modo mais amplo, a necessidade de medidas de compensação explícitas para os custos gerados.
Para ter claro, o acordo contemplado no PL anunciado nos últimos dias prevê uma escadinha para a retomada das alíquotas da contribuição sobre a folha, até 2027, sendo a desoneração preservada para o ano de 2024. Para os anos de 2025 a 2027, é possível, conforme artigo 14 da LRF, contemplar os custos na própria projeção de receita. Isso precisa ser evidenciado, claro, no envio do PLOA, a ocorrer em agosto próximo para o ano que vem.
Para o ano corrente, entretanto, já ficou claro que, até hoje, quando este texto está sendo publicado, seria preciso que o governo houvesse indicado medidas compensatórias para a desoneração. Era parte do acordo. O PL citado não trouxe essas medidas. Apenas mencionou que o desempenho da arrecadação está sendo muito positivo no início do ano e as medidas aprovadas no ano passado dariam conta, supostamente, da eventual compensação.
Mas não dão. A compensação é algo muito específico. É preciso anunciá-la, inclusive, quanto antes, para selar o compromisso dentro do acordo a partir da decisão do ministro Zanin, ocasionada a partir da judicialização promovida pela própria União, vale dizer, motivada pela crítica ao Congresso de que não previra impacto do custo da desoneração da folha na lei promulgada, tampouco medidas compensatórias. Isso é fundamental.
Vale dizer, adotado esse caminho completo, com as medidas compensatórias para o ano de 2024, teremos um precedente muito importante que poderá impedir futuras estripulias do Congresso e de quem quer que seja em relação ao avanço de medidas que virem realidade impondo custos ao Erário sem indicar a devida fonte de financiamento e compensação intertemporal.
Podemos fazer dos limões uma limonada. Vale o mesmo para o caso da desoneração dos municípios, se avançar. Vamos ver. É uma chance de ouro à responsabilidade fiscal. Uma regra passaria disso — uma simples regra na cabeça de especialistas e na letra fria das leis — a um comportamento obrigatório e esperado em cada ação dos agentes públicos com impacto sobre as contas do país.
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