Graciliano Rocha

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Reportagem

SNI comprou imóvel para espionar adversários e registrou em cartório no RS

Imagine um serviço secreto que registra, em cartório, um esconderijo no seu próprio nome. Aconteceu no Brasil.

Agência de espionagem da ditadura militar, o SNI (Serviço Nacional de Informações) comprou um conjunto de salas no centro de Porto Alegre, usadas para fotografar secretamente participantes de manifestações de esquerda nos anos 1980.

A compra foi realizada em nome do próprio órgão de espionagem no registro público, podendo ser consultado por qualquer pessoa que fosse ao cartório da 1ª zona da capital gaúcha. A compra do imóvel foi formalizada em 11 de outubro de 1988, na semana seguinte à promulgação da nova Constituição e três anos depois do fim do regime militar.

A base quase secreta do SNI ficava na esquina da avenida Borges de Medeiros com a rua dos Andradas, no centro histórico da cidade. Esse cruzamento passou a ser conhecido como "Esquina Democrática", um tradicional ponto de manifestações contra a ditadura militar depois que dois vereadores de esquerda foram cassados pela Câmara e passaram a fazer ali seus discursos.

Com 85 metros quadrados de área total, o aparelho do SNI ficava no segundo andar do edifício Missões e custou 6,2 milhões de cruzeiros pelo imóvel (R$ 155 mil, corrigidos pela inflação).

"Um dia eu fui reclamar do condomínio do prédio que estava muito caro e o administrador afirmou que várias unidades não estavam pagando. Ele disse que o conjunto 22 estava inadimplente há muitos anos. Quando fomos ao registro público para ver de quem era, topamos com a informação de que o imóvel tinha sido comprado pelo SNI", conta Jair Krischke, líder do Movimento Justiça e Direitos Humanos. A entidade de Krischke ocupava outra sala no mesmo edifício.

"Essa não era a sede do SNI em Porto Alegre na cidade, que funcionou no edifício do Banrisul na praça da Alfândega (sede do banco estatal, a algumas centenas de metros). Mas eles já ocupavam isso aqui muito antes, provavelmente alugando as salas, como um aparelho", afirma Krischke.

A descoberta insólita ocorreu em 2017. À época, foi encontrado no prédio um molho de chaves que dava acesso às salas do conjunto 22, com um chaveiro escrito "Abin". A Agência Brasileira de Informações é a sucessora do velho SNI.

Não se sabe até quando o local foi usado pelo SNI ou pela Abin.

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Molho de chaves de salas da "Abin" encontrado pelos novos ocupantes do imóvel
Molho de chaves de salas da "Abin" encontrado pelos novos ocupantes do imóvel Imagem: Reprodução

MANIFESTAÇÕES E ENTULHO AUTORITÁRIO

Mesmo após o fim do regime militar, a estrutura de espionagem da ditadura ainda não havia sido integralmente desmontada no governo Sarney. Foi somente em março de 1990, após a posse de Fernando Collor, que o SNI foi extinto.

A Esquina Democrática sempre foi sucesso de público por estar num cruzamento para pedestres, muito perto dos pontos finais de lotações, como são chamados os micro-ônibus de Porto Alegre, e do principal terminal de ônibus da cidade.

1988 foi um ano de intensa atividade em frente ao aparelho do SNI. Na tarde de 14 de novembro, véspera da eleição para prefeito, a campanha do PT fez uma caminhada pela rua da Praia, como os porto-alegrenses se referem à rua dos Andradas, até a Esquina Democrática.

Ao chegar ao local, o candidato a prefeito Olívio Dutra, que ganhara projeção política como presidente do sindicato dos bancários no RS, estava acompanhado de um ex-metalúrgico, veterano das greves do ABC em 1980 e que exercia o mandato de deputado pelo PT de São Paulo, Luiz Inácio Lula da Silva.

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Aquele último ato de campanha, silencioso porque a legislação vetava comícios na véspera da votação, selou a vitória de Dutra e o início de uma hegemonia que duraria 16 anos do PT na capital gaúcha.

(A partir da esquerda) Tarso Genro, Olívio Dutra e Lula em caminhada rumo à Esquina Democrática, em 1988
(A partir da esquerda) Tarso Genro, Olívio Dutra e Lula em caminhada rumo à Esquina Democrática, em 1988 Imagem: Fundação Perseu Abramo/Karing Emerich

Além de fazer parte de qualquer manual básico de inteligência a obrigação de manter suas operações clandestinas em segredo, o registro em nome do SNI é irregular do ponto de vista legal porque esta autarquia da administração direta nunca teve personalidade jurídica; isto é, não tinha número próprio de CNPJ para realizar negócios jurídicos, como compra e venda de imóveis ou para ser dona de propriedades.

"É bem provável que tenha sido registrado assim por causa de uma carteirada ou coisa do tipo, que era comum no passado", diz Krischke. Foi só em 1998, já no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, que o imóvel passou a pertencer formalmente à União, que retificou a escritura.

ROTAS DE FUGA PELA FRONTEIRA

Nascido em 1938, Jair Krischke é um ativista de direitos humanos do Cone Sul da América do Sul que se tornou célebre por ter atuado, entre 1964 e 1979, na preparação de fugas de pessoas perseguidas no Brasil para o exterior.

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No sentido oposto, também era um ponto de apoio para trazer clandestinamente ao país argentinos e uruguaios quando as ditaduras de seus países embicaram para fases mais ferozes de tortura e morte no final dos anos 1970 e começo dos 1980.

O número de pessoas assistidas por Krischke e sua rede é incerto, com a contagem indo das centenas de casos até uma estimativa de 2.000 pessoas salvas. É impossível de saber ao certo porque essas operações não ficavam registradas em papel.

"Muitas vezes, nós nem queríamos saber os nomes das pessoas para evitar ter qualquer informação útil em caso de prisão", relembra o ativista.

Durante a abertura do governo Geisel (1974-1979), ele passou a trabalhar com o Acnur (Alto Comissariado da ONU para Refugiados), que abriu um escritório no Rio, e tomou parte na campanha da Anistia. Em 1979, ele foi um dos fundadores do Movimento Justiça e Direitos Humanos, em Porto Alegre, que também abriga um dos mais importantes arquivos privados sobre a perseguição a oponentes de esquerda pelas ditaduras do Cone Sul.

Vista do prédio de onde SNI observava movimentações políticas na Esquina Democrática
Vista do prédio de onde SNI observava movimentações políticas na Esquina Democrática Imagem: Divulgação

Nem sempre as relações de solidariedade forjadas sob o arbítrio sobreviveram ao jogo político na democracia. No começo dos anos 2000, Jair Krischke foi um dos pivôs da CPI da Segurança Pública, que apurou as ligações do PT com o jogo do bicho, levando às cordas o governo de Olívio Dutra no RS.

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Krischke tornou pública a gravação de uma conversa em que Diógenes Oliveira, um ex-preso político que atuava como arrecadador de fundos para o PT, pressionava o chefe da Polícia Civil a amolecer a repressão ao jogo do bicho.

Na época, o governador negou envolvimento com o caso. Oliveira se disse vítima de "linchamento midiático". O PT gaúcho tem Krischke atravessado na garganta.

SALAS ABRIGAM ARQUIVO DE DIREITOS HUMANOS

Depois da descoberta do aparelho do SNI e da inadimplência em 2017, a direção do Movimento Justiça e Direitos Humanos pleiteou a cessão do conjunto para abrigar sua entidade.

O processo, que incluiu entrevistas e análises da Secretaria do Patrimônio Público da União, foi deferido no final do governo Temer (2018), mas a cessão das salas da União só foi publicada no Diário Oficial, em janeiro de 2019.

Krischke preferiu esperar o fim do governo de Jair Bolsonaro, abertamente pró-ditadura e crítico de entidades de direitos humanos, para contar pela primeira vez a história do registro em nome do SNI. Ele temia que o governo anterior pudesse cancelar a cessão do imóvel por birra.

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O antigo esconderijo de espiões hoje abriga uma biblioteca, uma sala de arquivos e o escritório da organização dedicada a manter viva a memória dos anos de tirania.

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