Graciliano Rocha

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Opinião

Um spoiler: Ninguém vai enterrar a fiação elétrica de SP de graça

1. Os dirigentes da Enel culparam as árvores e o vento por terem deixado milhares de clientes da companhia mais de quatro dias sem eletricidade. As árvores e o vento já existiam muito antes de 2018, quando o tempo de atendimento para uma chamada pela companhia elétrica era de seis horas, em média. Hoje, leva o triplo disso.

2. A questão central é a demora em reparar a rede e devolver o serviço à normalidade. No contrato de concessão, a empresa se comprometeu a contratar seguro para lidar com danos nessas emergências. A conferir.

3. A raiva justificada de donos de residências e negócios prejudicados pela incompetência da empresa provavelmente vai produzir milhares de ações individuais contra a concessionária. A experiência ensina, contudo, que a maior parte desse papelório tende a produzir resultado nenhum.

4. O ordenamento jurídico oferece um meio mais eficiente de reparação de prejuízos à coletividade, que é a ação civil pública. Neste caso, o Ministério Público - representando um número incerto de prejudicados coletivamente - tende a ter mais poder de fogo para enfrentar uma multinacional bilionária num litígio do que uma multidão de indivíduos de modo isolado.

5. Estou dizendo para você não buscar a Justiça em busca de receber reparação pelos seus prejuízos? Não, estou dizendo para você juntar provas robustas de que foi prejudicado pela demora da Enel. Advogado não faz milagre.

6. As redes sociais foram pródigas em gente culpando a privatização pela confusão da Enel. É claro que o passado é um lugar quentinho, onde a memória induz à ilusão de que tudo era melhor: os nossos joelhos não doíam, os políticos eram estadistas e as compras eram mais baratas.

7. A memória de quem se opõe por razões ideológicas às privatizações também prega peças: a Eletropaulo também tinha sua cota de malfeitores. E não oferecia um serviço qualitativamente melhor do que o oferecido hoje (basta comparar o número de incidentes de interrupção do serviço).

8. Escapou à memória de muita gente a construção da sede da Eletropaulo, na Marginal Pinheiros. A obra teve início em 1991, durante o governo de Luiz Antonio Fleury Filho (MDB), e tornou-se símbolo de superfaturamento e corrupção. Antes de ser abandonada em 1994, a obra gastou o dobro do previsto inicialmente, US$ 195 milhões.

9. O emaranhado de fios nos postes elétricos é um lembrete de que, apesar da riqueza existente, São Paulo é uma cidade de Terceiro Mundo (abro mão do eufemismo "emergente" aqui).

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10. O prefeito Ricardo Nunes (MDB) meteu os pés pelas mãos quando foi falar de uma "taxa de contribuição" para enterrar fios. Depois, emendou dizendo que seria uma coisa "voluntária", em que os moradores seriam consultados se optariam ou não pela obra, mediante pagamento.

11. Não existe esse negócio de "taxa de melhoria". Pela lei, há três espécies de tributos: os impostos, as taxas e a contribuição de melhoria. Imposto é aquilo que o contribuinte paga, mas não tem uma destinação específica, entra no monte de dinheiro que compõe o Orçamento para pagar despesas gerais da administração, como gastos com pessoal, saúde e educação.

12. As taxas só podem ser cobradas pelo exercício do poder de polícia do Estado ou pela prestação de algum serviço público. Exemplo: ao ingressar com uma ação na Justiça, o cidadão paga taxas que ajudam a máquina a continuar funcionando. Como se trata de obra, não é daí, portanto, que vai sair o dinheiro para enterrar os fios.

13. Por último, a contribuição por melhoria, que nada mais é o retorno que o particular dá ao poder público por uma melhoria que provocou alguma valorização do seu imóvel. Em teoria, este seria o caminho para cobrar pelo aterro da descabelada rede elétrica.

14. "Mas a Prefeitura precisa provar, através de estudos ou laudos, que houve valorização daqueles imóveis nas ruas onde fez a obra de aterramento - o que nem sempre é uma coisa simples", aponta o advogado Márcio Cavalcanti, professor de direito tributário no Mackenzie.

15. O poder público pode decidir se cobra ou não a contribuição por melhoria. Se decide não cobrar contribuição, teria de financiar as obras com dinheiro do Orçamento geral.

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16. O problema desta opção é a injustiça de fazer o morador do carente Itaim Paulista (zona leste de São Paulo) financiar as obras no rico Itaim Bibi (zona oeste).

17. Alguma alma bem-intencionada já perguntou por que a Enel não banca o aterro dos fios na cidade já que ela tem lucros bilionários? Resposta prosaica: essa obrigação não estava no contrato de concessão.

18. O serviço de distribuição de energia pertence ao Estado e é concedido a empresas (estatais ou privadas) para ser executado. Os investimentos em obras devem estar previstos em contrato, independente do concessionário ser estatal ou privado. Integrando os contratos, esses gastos passam a fazer parte da fórmula financeira da concessão.

19. Se o investimento multibilionário em aterramento de fios estivesse no contrato, ele também estaria nas contas de luz.

20. Você já deve ter idade suficiente para saber que não há nada grátis nesta vida.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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