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José Paulo Kupfer

Pandemia detona teto de gastos, e forçará aumento de impostos 

25/06/2020 04h00

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A pandemia de Covid-19 acelerou tendências em diversos campos da vida cotidiana, exigiu alterações, às vezes radicais, em políticas políticas e expôs imensas fraturas sociais mundo afora. Não foi diferente no Brasil, com agravantes adicionados pelo negacionismo e o tratamento irresponsável do gravíssimo problema pelo governo do presidente Jair Bolsonaro.

Na economia, área diretamente impactada pelo inaudito choque simultâneo de oferta e demanda, os desdobramentos estão sendo profundos. O colapso da atividade econômica pôs o setor privado a nocaute. A necessidade de ampará-lo, oferecendo suporte de crédito e renda a trabalhadores e empresas, recolocou o protagonismo do Estado na ordem do dia.

Não só para garantir liquidez ao sistema financeiro e manter os negócios minimamente em funcionamento, mas também para dar apoiar trabalhadores informais e pessoas vulneráveis, só restou o Estado como fornecedor dos recursos necessários. Mais do que isso, ficou claro que, no caso dos mais vulneráveis - pelo menos um terço dos brasileiros -, o apoio emergencial dificilmente deixará de se transformar em algum tipo de renda básica permanente.

Cálculos da IFI (Instituição Fiscal Independente), órgão vinculado ao Senado Federal, que acompanha a evolução das contas públicas e goza de elevada credibilidade pública, mostram que os gastos do governo com o enfrentamento da pandemia, em 2020, superarão R$ 600 bilhões, o equivalente a 8,7% do PIB. Considerando perdas de receitas e outros eventos, a IFI projeta déficit primário de R$ 877 bilhões para este ano, representando 12,7%.

O financiamento dessa montanha de recursos resultará em inevitável aumento da dívida pública. Com a contração prevista para o PIB, a relação dívida bruta/PIB se aproximará de 100%, em 2020, superando essa fronteira em 2021. Também o teto de gastos, de acordo com as previsões da IFI, será rompido em 2021.

Vê-se que, de repente, os esforços para conter gastos públicos e abrir espaços ao setor privado, pelo menos temporariamente, ficaram obsoletos. Ao mesmo tempo em que as muitas camadas de regras de controle de gastos perdem eficácia, cresce a compreensão de que um novo ponto de ajuste nas contas públicas não será viável, em termos técnicos ou políticos, sem elevação da carga tributária.

Alguns podem se surpreender com essa virada nas prioridades das políticas públicas, mas a surpresa verdadeira vem da prolongada falta de sensibilidade social para os problemas que a pandemia tornou agudos. Pobreza em larga escala e desigualdades chocantes, inclusive nas variantes raciais e de gênero que agora saltam aos olhos, sempre foram uma vergonhosa marca brasileira.

A adoção do teto de gastos é um exemplo de como essas manchas sociais, embora bem conhecidas, permaneciam postas de lado. A norma de controle foi a marca inaugural do governo de Michel Temer, que, como vice-presidente eleito em 2014, substituiu Dilma Rousseff, destituída por um impeachment, em 2016.

Sob a forma de emenda constitucional, o teto de gastos, aprovado em dezembro do mesmo ano, pouco mais de dois meses depois da posse definitiva de Temer, foi a marca inaugural do governo de Michel Temer, que, como vice-presidente eleito em 2014, substituiu Dilma Rousseff, destituída por um impeachment, em 2016. Comprovante da orientação liberal que Temer prometeu imprimir a seu governo, o teto nasceu antes das prometidas reformas estruturais - como a da Previdência -, que visavam dar mais eficiência aos gastos públicos, quando, pelo lógica econômica, deveria ser o coroamento dessas reformas. Sua ideia central era reduzir o tamanho do Estado, abrindo novos espaços para o setor privado,

Desenhado para conter no piloto automático o crescimento dos gastos públicos, o mecanismo do teto de gastos determina que as despesas públicas devem permanecer estáveis em termos reais, não podendo aumentar mais do que a inflação do ano anterior. Pela regra do teto, toda vez que a economia crescesse, os gastos públicos encolheriam em relação ao PIB.

Num país com tantas desigualdades e tão pobre, ainda mais quando neste país vigora um sistema tributário que tributa mais quem tem menor capacidade de contribuir, o teto de gastos configurou uma inviabilidade social, servindo como combustível de acirramento dos conflitos distributivos. Seus arquitetos, porém, preferiram ignorar os potenciais e estreitos limites políticos existentes, e produziram um mecanismo rígido.

Outros países adotam tetos de gastos, mas em nenhum caso o instrumento tem a rigidez conferida por uma inserção da regra no texto constitucional. Também nenhum outro estabelece prazo tão longo - 20 anos, com possível revisão na metade do prazo -, limitando sua duração ao ciclo político-eleitoral. Todos os demais, além disso, admitem muito mais cláusulas de escape, preservando, principalmente, os investimentos públicos, o que não é previsto no teto de gastos brasileiro. Resumindo, o teto de gastos, além de tudo, é uma autêntica jabuticaba.

Formatado com folgas para seus anos iniciais, o teto de gastos não deve resistir nem a uma quinta parte da sua prevista longa existência. Se já era tecnicamente capenga, o teto de gastos teve a sua lógica fundamental detonada pela pandemia. Quando o Estado reassume um protagonismo que o mecanismo do teto objetiva impedir, é óbvio que ele perde seu sentido de existir.

Se libertado do teto, o aumento dos gastos públicos para enfrentar a pandemia tende a acelerar uma reforma tributária que, além da simplificação almejada pelas propostas já em discussão no Congresso Nacional, terá de contemplar alguma reversão do caráter regressivo do sistema tributário em vigor. A verdade é que, entre renúncias fiscais, isenções, abatimentos e taxação mais leve sobre renda e patrimônio do que sobre consumo, no Brasil, quem pode menos paga mais imposto do que quem pode mais.

Tal distorção abre espaço para ajustes capazes de reequilibrar a balança tributária, corrigindo o mito de que a carga tributária brasileira é alta. Sim, a carga brasileira tributária brasileira é alta, mas alta para quem?. Se, em comparação com outros países, sobretudo emergentes de renda per capita semelhante, a carga é alta na média, também é muito alta na ponta de renda mais baixa, e muito baixa na ponta de renda mais alta.

Tudo isso considerado, é compreensível que esteja em formação consenso de que é possível melhorar a arrecadação pública para compensar o aumento de gastos em programas sociais. As propostas em debate convergem para a sugestão de cortes em abatimentos de despesas e criação de novas alíquotas para rendas superiores no Imposto de Renda, incluem tributar lucros e dividendos, hoje isentos, e elevar a taxação de patrimônio e riqueza. O pacote se completa com o reexame das renúncias fiscais, cujo montante soma algumas vezes as despesas projetadas para sustentar de forma permanente programas de renda básica para grupos de cidadãos vulneráveis.

O governo Bolsonaro, com o ministro da Economia, Paulo Guedes, na linha frente, tentará resistir. Mas é questão de tempo - e de tempo curto - para que estas questões entrem na pauta do Congresso.