Todos a Bordo

Todos a Bordo

Reportagem

A história da aérea que teve perseguição na ditadura agora reconhecida

No final de setembro, o governo federal anistiou politicamente e pediu desculpas a Celso da Rocha Miranda, sócio majoritário da extinta companhia aérea Panair. Em 1965, a empresa era fechada em plena ditadura por desagradar os militares. O pedido de desculpas pela perseguição feita à empresa se soma agora a outros reconhecimentos da ilegalidade da atuação do governo ao longo dos anos.

A história da Panair

Empresa foi criada no ano de 1929. Seu nome inicial era NYRBA do Brasil, braço brasileiro da New York-Rio-Buenos Aires Line).

Em 1930, foi comprada pela Pan Am (Pan American World Airways), uma das principais empresas dos EUA à época. Com a incorporação, mudou de nome para Panair do Brasil, nome que fazia alusão à sua controladora.

Foi a principal empresa brasileira entre as décadas de 1930 e 1960. Sua principal concorrente no período foi a Syndicato Condor, pertencente à Condor Syndikat, empresa alemã que viria a se tornar a Lufthansa.

Sua operação inicial era focada em pousos e decolagens na água, com hidroaviões. A partir de 1937 começou a receber os aviões Lockheed L-10 Electra, que operavam apenas em pistas no solo.

À época do seu fechamento, a Panair contava com um quadro de cerca de cinco mil funcionários.

A história da companhia aérea foi retratada em livro. A obra "Pouso Forçado — A história por trás da destruição da Panair do Brasil pelo Regime Militar" (Editora Record), do jornalista Daniel Leb Sasaki, é a principal fonte desta reportagem.

O fim da ligação com a Pan Am

Na década de 1940, a empresa começou a se desvencilhar do seu controle norte-americano. O governo nacionalista de Getúlio Vargas incentivava a aquisição das ações da empresa.

Continua após a publicidade

Até o meio da década, metade da empresa já era controlada por brasileiros. Em 1947, 52% do capital da aérea era nacional.

Em 1961, o controle da Panair passou a ser 100% brasileiro. Os empresários Celso da Rocha Miranda e Mario Wallace Simonsen passaram a controlar a aérea, deixando a Pan Am para trás.

Empresa ficou marcada por ajuda a João Goulart

Em 1961, Jânio Quadros renunciava à Presidência da República. João Goulart (Jango), seu vice, estava em viagem oficial à China. Ao mesmo tempo, se articulava um golpe para impedir a sua posse.

Jango teve problemas para poder voltar e assumir a presidência. A presença do político em um país considerado comunista, regime ao qual ele teria uma tendência ideológica, desagradava os políticos mais conservadores e os militares.

Executivo da ligado a Wallace Simonsen ajudou Jango na volta ao país. Max Rechulsky era diretor das empresas do sócio da Panair na Europa e conhecia João Goulart da época em que foi tesoureiro do Partido Comunista Brasileiro. Ele foi enviado por Wallace Simonsen para acompanhar o então vice-presidente do país na Suíça e levá-lo até Paris, onde ofereceu a infraestrutura necessária para que Jango se comunicasse. Wallace Simonsen era legalista, ou seja, contrário ao golpe e a favor da Constituição, e acabou se tornando um desafeto dos militares, que queriam dar o golpe já naquele momento. Mais tarde, o outro sócio da Panair, Rocha Miranda, também se tornaria alvo dos militares.

Continua após a publicidade

A perseguição

Militares no espaço da empresa aérea Panair, que teve a falência decretada em 1965
Militares no espaço da empresa aérea Panair, que teve a falência decretada em 1965 Imagem: Acervo UH/Folhapress

Em 1964, os militares davam o golpe e assumiam o país. O grupo tinha receio de que os empresários da Panair apoiassem o retorno de Juscelino Kubitschek ao poder, já que ele era próximo de Miranda.

No começo de fevereiro de 1965, as autorizações da Panair para voar foram canceladas pelos militares. Voos internacionais passaram para a Varig (Viação Aérea Rio-Grandense), e os domésticos, para a Cruzeiro do Sul (antiga Syndicato Condor, que mudou de nome durante a Segunda Guerra Mundial).

Alegação era a de que as dívidas da companhia com o governo e com outros fornecedores não poderiam ser quitadas. Por esse motivo, as operações aéreas estariam em risco.

A empresa, entretanto, tinha várias outras fontes de renda. Grande parte do patrimônio da companhia, como aeroportos e uma oficina de motores, poderia ser usado para pagamento das dívidas. Mas não foi suficiente, e militares passaram a ocupar as instalações da empresa.

Continua após a publicidade

A Panair chegou a entrar com um pedido de concordata na Justiça. A medida era o equivalente a atual recuperação judicial. A previsão era a de que ela pagasse 60% de suas dívidas em até dois anos.

Juiz Mário Rebello, responsável pelo pedido, solicitou informações aos militares. O objetivo era entender por qual razão a Aeronáutica havia proibido a empresa de voar. Magistrado recebeu a visita pessoal do então ministro da Aeronáutica, brigadeiro Eduardo Gomes. Fardado, ele teria proibido Rebello de autorizar a recuperação da empresa e determinou que ele decretasse a falência.

Em cinco dias, tempo rapidamente incomum, a Justiça decretou a falência da Panair. Um mês depois, em 23 de março de 1965, Wallace Simonsen morria em Paris, aos 56 anos.

Rocha Miranda morreu em 1986. O empresário discutiu o caso na Justiça até morrer, no ano de 1986. Ambos donos da Panair tiveram suas vidas empresariais devastadas pelo regime, com o fechamento de outras companhias do grupo, inclusive.

Em 1995, falência foi extinta e empresa pôde ser reaberta. Hoje, a Panair não voa, mas é dirigida por Rodolfo Rocha Miranda, filho do antigo dono, que foi quem recebeu o pedido de desculpas post mortem em nome de seu pai no fim de setembro, quando a Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania aprovou o pedido de anistia.

Era dona da Celma

Em 1957, a empresa havia comprado a Companhia Eletromecânica Celma. O local se tornou um dos mais avançados locais de manutenção de motores do mundo.

Continua após a publicidade

O centro havia sido criado em 1951 em Petrópolis (RJ) pela família Rocha Miranda. Em 1966, a empresa foi desapropriada e declarada de utilidade pública em favor da União Federal por decreto do então presidente Castello Branco.

Na decisão, constou que as ações da empresa estavam em posse temporária da massa falida da Panair. A Celma poderia ter sido usada para quitar as dívidas que foram consideradas impagáveis pela Panair.

Perseguição reconhecida

Ao longo dos anos, ocorreram diversos reconhecimentos de que a empresa foi perseguida e fechada irregularmente.

  • Em 1984, o STF (Supremo Tribunal Federal) reconheceu que a dívida que a União tentava cobrar da Panair era irregular.
  • Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade reconheceu que a empresa foi encerrada por motivos políticos, e não financeiros, com a participação de agentes públicos e também com o objetivo de favorecer concorrentes.
  • Em 2020, a Justiça Federal do Rio de Janeiro afirmou que a companhia foi alvo de uma série de práticas para inviabilizar seu funcionamento, assim como outras empresas de Rocha Miranda.
  • Em 2023, o sócio majoritário da empresa recebeu anistia política e um pedido de desculpas da Comissão de Anistia do governo federal.
  • Na mesma sessão que anistiou Rocha Miranda, a presidente da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos, Eneá de Stutz e Almeida, fez um pedido para o herdeiro do empresário para que as cinco mil famílias dos funcionários afetados pelo fechamento da Panair iniciem um processo de anistia coletivo. O objetivo é que cada nome ganhe visibilidade, incluindo o dos ex-sócios e diretores, como afetados pelo fim das operações da companhia aérea. Até hoje, representantes dos herdeiros reivindicam parte do patrimônio da empresa.

Curiosidades

  • Wallace Simonsen também era dono da TV Excelsior, que, entre vários problemas, sofria forte censura do governo, afastando patrocinadores. A emissora fechou as portas em 1970.
  • A Panair foi autorizada na década de 1940 a construir e manter aeroportos em Macapá (AP), Belém (PA), São Luís (MA), Fortaleza (CE), Natal (RN), Recife (PE), Maceió (AL) e Salvador (BA). Boa parte dessas estruturas existe até hoje e foram tomadas pelo governo à época.
  • Nos locais onde se instalava, a Panair estabelecia infraestruturas nos locais que nem o poder público tinha. Como exemplo, ela desenvolvia as infraestruturas necessárias para receber seus aviões e manter canais de telecomunicações para poder conectar suas bases espalhadas pelo país e pelo mundo em uma época que isso era novidade.
  • A empresa foi a primeira a fazer voos regulares ligando a América do Sul à África, Europa e Oriente Médio.
  • A Panair foi a primeira empresa estrangeira a pousar no aeroporto de Heathrow, em Londres (Inglaterra). Local é um dos mais movimentados do mundo atualmente.
  • Na virada da década de 1940 para a de 1950, a empresa era considerada aquela com a maior rede de voos domésticos do mundo.
Continua após a publicidade

Aeronaves e rotas

Durante sua existência, a companhia aérea utilizou aeronaves dos seguintes modelos, entre outros:

  • Douglas DC-3, DC-7 e DC-8
  • Lockheed Constellation
  • PBY-5 Catalina
  • Caravelle
  • Lockheed L-10 Electra

A empresa tinha uma forte presença em todo o território nacional. Entre as rotas internacionais, se destacavam:

  • Madri (Espanha)
  • Roma (Itália)
  • Cairo (Egito)
  • Istambul (Turquia)
  • Zurique (Suíça)
  • Frankfurt (Alemanha)
  • Montevidéu (Uruguai)
  • Buenos Aires (Argentina)
  • Santiago (Chile)
  • Lima (Peru)
  • Beirute (Líbano)

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

Só para assinantes