Todos a Bordo

Todos a Bordo

Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

Choque aéreo que matou ex-presidente há quase 60 anos ainda é um mistério

No dia 18 de julho de 1967, morria em um acidente aéreo Humberto de Alencar Castello Branco. Enquanto se preparava para pousar, o avião que levava o primeiro presidente da ditadura sofreu um impacto provocado por uma aeronave da FAB (Força Aérea Brasileira) e caiu em seguida.

Esse tipo de acidente é raro de acontecer, ainda mais quando o choque é com uma aeronave militar. Para se ter uma ideia, entre 2012 e 2022, o país registrou três acidentes fatais envolvendo colisões de aeronaves em voo, segundo dados do Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos), órgão ligado à Aeronáutica.

No acidente com o ex-presidente, além dele, morreram seu irmão Cândido Castello Branco, a escritora Alba Frota, o major do Exército Manuel de Assis Nepomuceno e o piloto Celso Tinoco. O copiloto Emílio Celso Tinoco, filho do piloto, foi o único sobrevivente.

Batida na cauda

Castello Branco visitava a fazenda Não Me Deixes, na região de Quixadá (CE), para encontrar a escritora Rachel de Queiroz. No dia seguinte à visita, o militar se dirigiu ao aeroporto da cidade, onde embarcou com os demais passageiros e a tripulação para voar rumo à base aérea da capital Fortaleza.

A aeronave, um Piper Aztec, que pertencia ao governo do Ceará, decolou na manhã do dia 18, com tempo bom e céu aberto. Cerca de 40 minutos depois, já próximo ao destino, entrou em uma área destinada à prática de pilotos da Aeronáutica, em Fortaleza. Durante o procedimento de descida, o avião que levava o político foi atingido na cauda por um TF-33A, modelo usado em treinamentos, que voava em formação com outras aeronaves.

Na colisão, o TF-33A teve o tanque de combustível reserva da ponta da asa destruído, obrigando o piloto a fazer um pouso de emergência. Já o Piper, sem parte da cauda, perdeu o controle e caiu, matando todos seus ocupantes, exceto o copiloto.

O ex-presidente foi enterrado no Rio de Janeiro no dia 20 de julho. Seus restos mortais foram levados a um mausoléu construído no palácio da Abolição, sede do governo do Ceará, em Fortaleza. Lá, também está enterrada sua esposa, morta em 1963.

Aviões preservados

As duas aeronaves foram restauradas e estão em exposição para o público em Fortaleza. A militar na Base Aérea e a outra no 23º Batalhão de Caçadores do Exército, do qual Castello Branco é patrono.

Continua após a publicidade

Ex-presidente percebeu o acidente

De acordo com o depoimento do copiloto, ao perceber o risco de choque com o outro avião, Castello Branco levou as mãos ao rosto e alertou sobre a possível colisão. Após recuperar os sentidos no hospital, Tinoco também relatou que tudo aconteceu muito rápido e ao chegar ao solo ainda conseguiu tirar o marechal da cabine. Além disso, teve a impressão de que os demais ocupantes estavam acordados após a queda.

Atentado descartado

Assim como os resultados das investigações oficiais à época, a escritora Rachel de Queiroz, que tinha um parentesco com Castello Branco e foi a última pessoa a ter contato com ele antes do acidente, também descartou a possibilidade de um atentado. Em entrevista ao programa Roda Viva (TV Cultura) em 1991, ela lembrou que o marechal comentou com ela ter a intenção de sobrevoar a construção da linha de distribuição de energia, no rio São Francisco. No entanto, a região era, justamente, onde os jatos militares faziam seus treinamentos.

Conforme a escritora, para ser possível um atentado, os comandantes dos caças em formação precisariam ter "adivinhado" que Castello Branco queria passar por ali.

Contexto político da época

Castello Branco havia deixado de ser presidente da República poucos meses antes, e era aguardado um pronunciamento seu que, especulava-se, poderia causar um mal-estar no regime autoritário.

Continua após a publicidade

O ex-presidente representava uma ala do Exército conhecida como Grupo Sorbonne - idealizadores de um projeto de desenvolvimento e continuidade da industrialização do Brasil. A Presidência havia sido passada para o marechal Artur da Costa e Silva, pertencente à chamada linha dura do Exército, que endureceu a repressão no período. Como a morte se deu pela colisão com um caça de Aeronáutica, comandada por um presidente de uma ala divergente na época, levantaram-se suspeitas sobre o acidente.

Outro ponto suspeito é que Castello Branco havia prometido a volta das eleições no ano de 1965, mas isso foi adiado. A tese mais aceita hoje é que essa promessa era um argumento para atrair políticos contrários aos governos nacional-desenvolvimentistas anteriores.

No ano de sua morte, ainda não havia uma luta armada, mas já existia uma mobilização de setores da esquerda, como os movimentos estudantis e sindicatos contrários à ditadura. Os índices de emprego nas regiões economicamente mais dinâmicas cresceram, mas a inflação, apesar de ter diminuído, se mantinha alta, e não havia recomposição das perdas salariais.

O governo foi repassado para Costa e Silva a contragosto, pois, embora também fosse a favor do regime autoritário, o ex-presidente era contrário ao endurecimento e ao aumento da repressão extra, devido à outorga da nova Constituição.

Desta forma, havia um receio de que Castello Branco desse entrevistas e falasse sobre suas preocupações quanto às mudanças e o recrudescimento da ditadura. No dia da saída do militar do poder, passou a vigorar a nova Constituição, mais rígida e que consolidava o projeto de estado brasileiro instituído após 1964 pelos militares.

Apesar de o contexto favorecer teorias conspiratórias, nunca houve evidências que comprovem qualquer tipo de atentado.

Continua após a publicidade

Fonte: Julio Cesar Zorzenon Costa, historiador e professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

*Com matéria de julho de 2022.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

Só para assinantes